17/04/2019 às 10:54, atualizado em 17/04/2019 às 11:20

“O filho de Deus está entre nós”

Advogado de 31 anos protagoniza a Paixão de Cristo no Morro da Capelinha. Conheça, também, o primeiro homem a representar Jesus Cristo na Via Sacra de Planaltina

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília

Mauro Lúcio da Silva Campos (à esquerda) foi o primeiro Jesus do Morro da Capelinha. A honra agora pertence a Marcelo Ramos. Foto: Vinícius de Melo/Agência Brasília

Governador da província da Judeia sob o jugo do poderoso Império Romano, Pôncio Pilatos foi o juiz que selou o destino de Cristo, condenando-o à cruz, mas eternizando sua figura como símbolo duradouro da fé cristã. Quando surgiu a oportunidade de encenar um papel na Via Sacra de Planaltina, o advogado Marcelo Ramos não titubeou. Ao invés da toga de jurista, preferiu o manto simples de um carpinteiro. A estreia, no entanto, foi usando uma armadura.

“Antes do papel de Jesus eu fui soldado”, conta o jovem de 31 anos, os últimos cinco como protagonista da paixão de Cristo no Morro da Capelinha. “Para mim não existe um advogado mais dedicado do que Jesus, que entregou sua própria vida para defender uma causa que é a salvação da humanidade”, avalia, traçando um paralelo entre a profissão que escolheu e o humanismo do homem que revolucionou o mundo com o poder da palavra e do amor.

Aliás, amor e fé são os combustíveis sagrados que movimentam uma das mais belas vias sacras do país. Foi o que fisgou Marcelo, então um menino de 9 anos, que nem sonhava um dia ser legionário. Muito menos Jesus. Também é a fagulha que, há 46 anos, conduz milhares de fiéis ao Morro da Capelinha. Segundo dados da Secretaria de Cultura do DF, patrocinadora do evento, foram 60 mil pessoas na última edição.

“A Via Sacra é uma obra de Deus que toca o coração das pessoas de uma forma inigualável. Por isso, ela é tão especial e dura tantos anos”, observa Marcelo que, mesmo morando em Águas Claras, não se importa de atravessar o Distrito Federal toda semana para participar dos ensaios. “Eu sou filho de Planaltina, amo a cidade, mas devido à distância do trabalho achamos melhor mudar”, lamenta o advogado e ator amador.

Claro que, sendo “Jesus”, nenhum tipo de contratempo, empecilho ou mesmo distância é problema. E se a missão é encantar uma multidão de religiosos entorpecidos pelo mistério da fé e a força do amor, qualquer tipo de sacrifício é válido, engrandece o espírito. “Quando estou atuando me sinto como um instrumento de conversão. É como ler a Bíblia, cada um internaliza aquilo que ela precisa para o seu coração”, garante Marcelo, que quase foi ordenado padre.

Jesus pioneiro de Planaltina
Também nascido em Planaltina, Mauro Lúcio da Silva Campos, 65 anos, precedeu o advogado Marcelo em algumas décadas e teve a honra de viver o primeiro Cristo da Via Sacra de Planaltina. Foi no início dos anos 70. Na época, adolescente com seus 16 para 17 anos, madeixas longas e integrante do grupo da igreja, mais que natural que o papel do Salvador lhe caísse de mãos beijadas no colo. Assim, por 20 anos, ele não decepcionou a comunidade da paróquia de São Sebastião.

“Para fazer o Cristo tinha que ser alguém do cursilho. E, na época, por causa dos Beatles, era moda ter cabelo grande. E o meu estava comprido, então o pessoal da Igreja pediu para não cortar”, lembra Mauro. “Fiz a primeira Via Sacra e gostaram. Com o tempo me aperfeiçoei. Nas últimas edições, porém, eu já usava peruca por causa da careca”, lembra, sorrindo.

Entre o “pessoal da igreja” mencionado por Mauro Lúcio, destaca-se de forma marcante a figura do padre Aleixo Susin, 91 anos, o fundador da Via Sacra do Morro da Capelinha. E que teve a ideia de montar a encenação da paixão de Cristo em Planaltina motivado por uma revelação. “Tudo começou com ele, que achava o Morro da Capelinha bonito e queria aproveitar aquele cenário. No início, era bem precário, não tinha nada, a gente saía nas lojas pedindo roupa e equipamento de som, por exemplo”, recorda.

Hoje, nas palavras do primeiro Jesus do Morro da Capelinha, a realidade é bem diferente. Mas tudo foi construído aos poucos, “tijolo por tijolo”, como se fosse uma grande construção, com dedicação e amor, espírito de união e perseverança. As inovações e evoluções surgidas a cada ano eram apresentadas em reuniões de avaliação no final de cada Via Sacra, onde todos debatiam o que tinha que ser corrigido e melhorado. “Hoje, a estrutura é maravilhosa. Plantamos uma sementinha, ela cresceu e está dando fruto até hoje”, diz, sem esconder o orgulho.

Estrutura de cinema
E é verdade. Uma estrutura de cinema que encheria de satisfação Cecil B. DeMille, o mítico produtor dos clássicos bíblicos de Hollywood. Segundo informações da organização do evento, pelo menos 1,4 mil voluntários participam da organização da paixão de Cristo de Planaltina. Só na encenação, entre figurantes e atores, são 800 pessoas. E há mais 600 pessoas na equipe técnica. “É como se fosse uma corrente da fé”, compara o ex-ator.

Com a experiência de quem viveu por duas décadas o papel do homem mais importante do Cristianismo, Mauro Lúcio mostra o caminho da salvação para jovens como o advogado Marcelo Ramos e tantos outros que virão. “Fazer o papel com muita humildade, sem vaidade e viver, no dia a dia, a experiência de Cristo, se espelhar no que ele foi”, ensina.