Um dos principais cartões postais de Brasília nasceu antes mesmo da capital. Seis décadas antes, na verdade. Chamado de “moldura líquida da cidade” por Juscelino Kubitschek, a ideia de se ter um lago onde hoje existe o Lago Paranoá foi pensada bem antes da eleição do presidente que tirou Brasília do papel e da decisão definitiva de se transferir a capital para o Planalto Central.
Foi o botânico francês Auguste François Marie Glaziou o primeiro a perceber o potencial hídrico que alimentava o rio Paranoá. Ele foi um dos integrantes da Comissão Cruls, que visitou a região entre 1892 e 1894. Em seu artigo “Notícia sobre Botânica Aplicada”, presente no relatório parcial da Comissão de Estudos da Nova Capital da União, publicado em 1896 no Rio de Janeiro, Glaziou descreve o relevo da região e aponta as facilidades que a depressão provocada pelo Rio Paranoá e os pequenos rios ao seu redor davam à construção de um lago artificial.
“Ele observou o vale formado por um processo de milhões de anos: a erosão causada pelas águas dos rios que passavam ali e desaguavam no rio São Bartolomeu”, afirma Elias Manoel da Silva, historiador do Arquivo Público do DF. “Ele disse que, se represasse a água no local onde ficavam as cachoeiras do Paranoá, era fácil fazer um lago. Bastava fechar o Paranoá”, completa.

Em seu relatório, Glaziou comenta que chegou “a um vastíssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal e outros. Impressionou-me muitíssimo a calma severa e majestosa desse vale. […] Entre dois grandes chapadões na localidade pelos nomes de Gama e Paranoá, existe imensa planície em parte sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa”. E diz:
É fácil compreender que, fechando essa brecha, com uma obra de arte, forçosamente a água tornará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos Auguste François Marie Glaziou
A arquiteta Angelina Nardelli Quaglia acrescenta que o botânico francês também referenciava um futuro lago como elemento de “aformoseamento para a região, trazendo a admiração de todas as nações”. “O espelho d’água esteve presente desde o início como um importante elemento da topografia a ser inserido ao cotidiano da cidade”, afirma.
Depois das duas comissões presididas por Luiz Cruls ainda no século 19, várias comissões foram criadas para estudar a mudança da capital até 1955, quando JK foi eleito e começou de fato a transferência. Todas elas se reportavam às conclusões da Missão Cruls até que, em 1955, um projeto urbanístico da nova capital – elaborado a pedido do marechal José Pessoa, presidente da Comissão de Localização da Nova Capital do Brasil, chamado Vera Cruz –, traz o desenho de um lago. “O lago era pequeno, não tinha as dimensões do de hoje. Era apenas a representação de que a capital teria um lago”, explica Elias Manoel.
Certidão de nascimento
A certidão de nascimento do Lago Paranoá, no entanto, é do dia 30 de setembro de 1956, o dia da publicação do edital do concurso do Plano Piloto. A criação de um lago era exigência que todos os concorrentes deveriam levar em conta. Assim, todos os 26 projetos apresentados tinham no limite leste a presença de um lago cujo nível das águas era a cota 1.000, ou seja, a superfície do lago ficaria a mil metros acima do nível do mar.
Faziam parte da comissão que preparou o edital do concurso, os arquitetos Raul Penna Firme e Roberto Lacombe, os mesmos que tinham pela primeira vez criado o projeto Vera Cruz com a presença do lago artificial. “É bem provável que esses arquitetos conhecessem as sugestões apresentadas no relatório do botânico Glaziou”, diz o historiador do Arquivo Público.

A presença do lago então é justificada como fator estético e de lazer. Sua construção foi idealizada para aumentar a umidade do ar, diminuir a temperatura local e estabelecer uma fonte de lazer aos brasilienses. A construção da barragem no rio Paranoá começou em 1957 e as obras ficaram a cargo da empresa americana Raymond Concrete Pile Company of the Americas, a mesma que havia vencido a concorrência para entregar as estruturas metálicas dos edifícios da Esplanada dos Ministérios e única empresa estrangeira que trabalhava na construção da capital.
Construção da barragem
Num contexto em que as obras se guiavam pelo “ritmo de Brasília”, onde, em qualquer dificuldade, criava-se uma solução de emergência, o estilo de trabalho da empresa americana provocava atrasos constantes nas obras de construção da barragem. Juscelino, insatisfeito com o ritmo das obras, rescindiu o contrato e transferiu a responsabilidade pela construção da barragem para a Novacap, que dividiu o trabalho entre as construtoras Camargo Corrêa, Rabello e Engenharia Civil e Portuária. “A firma só sabia trabalhar segundo os métodos e os cronogramas norte-americanos”, dizia o presidente.
Para ele, era inconcebível a inauguração de Brasília sem o lago. “Como inaugurar Brasília sem o lago tão amplamente anunciado e que, além do mais, seria a moldura líquida da cidade?”, questionava. Operários que trabalharam na construção da barragem relatam que as comportas foram fechadas sem a represa estar pronta.

Vila inundada
Apesar dos contratempos, a barragem foi fechada em 12 de setembro de 1959, dia do aniversário de JK. Segundo o historiador Jarbas Silva Marques, a água subia cerca de dois centímetros por dia e, na inauguração de Brasília, o lago estava completamente formado.
No local havia um acampamento, a Vila Amaury, onde se abrigavam aproximadamente 16 mil operários da construção. Muitos não acreditavam que o local seria alagado, mas tiveram que sair às pressas quando a água chegou, mais rápido do que imaginavam os especialistas. A Vila Amaury naufragou e hoje suas ruínas podem ser vistas no fundo do lago.
O livro “1001 coisas que aconteceram em Brasília e você não sabia”, escrito pelo jornalista Hélio Queiroz, reúne mais de 700 relatos de fatos que aconteceram antes, durante e depois da construção de Brasília. Nele, pioneiros relatam que ”as águas do lago foram subindo e os moradores da Vila Amaury se mudando”. Até fins de 1959, mais de 100 famílias haviam se transferido. As transferências prosseguiram até o começo de 1960, quando as águas do lago cobriram toda a vila.
“Encheu, viu!”
O argumento de que o lago não iria encher porque as terras do Planalto Central eram porosas foi muito usado pelos opositores a Juscelino e contrários à transferência da capital e à construção de Brasília. Os boatos tinham dois autores principais: o presidente do Clube de Engenharia, Maurício Joppert da Silva, e o escritor Gustavo Corção. “A água do lago poderá ser absorvida pelo terreno, deixando-o vazio, total ou parcialmente”, escreveu Corção em um longo artigo no Jornal do Brasil em julho de 1959. Quando a barragem foi inaugurada e o lago começou a encher, JK mandou um lacônico telegrama a Corção dizendo “Encheu, viu!”
