31/10/2019 às 08:10, atualizado em 31/10/2019 às 10:57

Nascidas com Brasília: senhoras e senhores, com vocês… as satélites

Na segunda reportagem da série, mostramos que imigrantes chegavam ao Planalto Central todos os dias, antes mesmo da inauguração da capital. Os acampamentos de madeira não atendiam à demanda e a Novacap decidiu criar cidades. Taguatinga foi a primeira delas

Por Gizella Rodrigues, da Agência Brasília

“Naquela época, milhares de imigrantes, muitos com suas famílias, se dirigiam ao Planalto Central em busca de empregos. A construção de acampamentos de madeira não podia mais atender à demanda”. A frase de Ernesto Silva, pioneiro que foi diretor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) na época da construção de Brasília, está no livro História de Brasília e explica o surgimento das primeiras cidades-satélites.

O ano é 1958. A capital sequer tinha sido inaugurada e novos imigrantes desembarcavam aqui todos os dias. No livro Brasília Kubitschek de Oliveira, o escritor, jornalista, historiador e ex-governador do Distrito Federal Ronaldo Costa Couto relata que, em 1º de novembro de 1956, havia 232 operários em Brasília. Em fevereiro de 1957, a cidade já é um vasto canteiro de obras, com cerca de três mil candangos e mais de 200 máquinas em atividade incessante.

Os números crescem em ritmo vertiginoso. Recenseamento do IBGE mostra 12,7 mil residentes em julho de 1957, número que passa para 28,8 mil habitantes em 1958, quando foi criada Taguatinga. No início de 1959, mais 30 mil pessoas chegaram e a população total era superior a 60 mil habitantes na inauguração de Brasília.

Primeiros estabelecimentos comerciais de Taguatinga na Avenida Central em 1961. Foto: Getúlio Romão

Taguatinga foi a primeira cidade-satélite criada pela Novacap com o objetivo de proporcionar aos candangos que ajudaram a construir a capital a aquisição de um terreno para a construção da casa própria. “Taguatinga não foi uma invasão, não foi uma imprevidência”, ressalta Ernesto Silva. Inicialmente chamada de Vila Sarah Kubitschek, Taguatinga surgiu devido ao crescimento populacional da Cidade Livre, que não conseguia mais suportar a massa de imigrantes que chegavam à capital – sem ter onde morar, os recém-chegados passaram a se alojar em acampamentos ao longo da Avenida W3 e nas imediações do Núcleo Bandeirante.

Taguatinga: planejada, mas adiantada

Taguatinga foi planejada por Lucio Costa, mas deveria nascer apenas dez anos depois da inauguração de Brasília. Em junho de 1958, o traçado da cidade estava apenas em estudos, mas a pressão popular fez com que a Novacap acelerasse o assentamento das famílias na cidade-satélite.

Foto tirada nas proximidades da C3, no centro de Taguatinga, em 1964. Foto: Getúlio Romão

“Era um sábado. Cinco de junho de 1958. Juscelino estava em Brasília e fora convidado a jantar no restaurante JK, na Cidade Livre. Ao cair da tarde, soubemos que grande massa popular, que estimamos em duas mil pessoas, empunhando cartazes com dizeres como ‘Queremos ficar onde estamos’, se portava à frente do restaurante”, conta Ernesto Silva. Israel Pinheiro, então presidente da Novacap, pediu que sua equipe fosse ao local e, na ocasião, eles acalmaram os manifestantes falando sobre a criação da cidade-satélite a 25 quilômetros do Plano Piloto.

“Cumprindo o prometido, às sete horas da manhã do dia seguinte comparecemos à Vila Sarah Kubitschek e parlamentamos com os representantes da comunidade. Mostramo-lhes a planta de Taguatinga e fizemos ver a eles a vantagem de já se instalarem nos seus próprios lotes onde, mais tarde, poderiam construir a casa definitiva”, relata o então diretor na Novacap, acrescentando que a empresa pública prometeu transferir a população, dar transporte, construir os barracões, providenciar assistência médica e a construção de escolas.

Foto: Arquivo Público do DF

[Olho texto=”Você Sabia? A Avenida Samdu foi batizada por causa do Serviço de Atendimento Médico de Urgência que havia no local” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”centro”]

No primeiro dia destinado à transferência dos moradores no local, apenas uma família foi transferida. Em dez dias, cerca de quatro mil pessoas foram alojadas em Taguatinga, que começou a crescer com a chegada do mínimo de infraestrutura: hospitais, escola, a rede de abastecimento de água (ainda que provisória), fossas sépticas, transporte diário para os trabalhadores, feito em caminhões da Novacap.

Cidade-dormitório

Seis meses após a instalação dos primeiros habitantes, Taguatinga já era uma realidade, com escolas, hospitais, casa para professoras e estabelecimentos comerciais em funcionamento. A cidade foi planejada para ser uma cidade-dormitório para apenas 25 mil pessoas e os primeiros moradores ocuparam a área onde hoje estão localizadas a QSD e a QSC do Setor Sul. “Tudo mudou depois que mudou a capital. A imprevidência e a demagogia geraram a Vila Dimas e Vila Matias, os terrenos foram distribuídos a apaniguados, praças públicas foram loteadas e os lotes foram vendidos a amigos da situação”, relata Ernesto Silva, lembrando que, em 1959, Taguatinga tinha uma população de 3.677 moradores.

Imagem aérea do balão da Avenida Central de Taguatinga em março de 1964. Foto: Getúlio Romão

“Durante muitos anos a cidade era chamada de cidade-dormitório. As pessoas trabalhavam no Plano e dormiam aqui. Mas os taguatinguenses não gostavam nem um pouco desse título, custamos a tirar esse nome”, diz o pioneiro Getúlio Romão, 74 anos, que chegou à cidade em dezembro de 1960, com o pai, José Romão Filho, aos 15 anos.

“Ele foi convencido por amigos e veio fundar uma empresa de ônibus aqui. Naquela época, todo mundo queria vir para Brasília ficar rico”, conta o profissional que se tornou uma espécie de fotógrafo oficial da cidade e tem dezenas de milhares de fotografias de Taguatinga tiradas nesses 61 anos. “Tudo de importante que aconteceu aqui foi registrado por mim. Eu fotografei tudo que cresceu, inaugurou, foi fabricado aqui”, afirma.

O pai de Getúlio não ficou rico como planejava. Um ano depois da chegada a Brasília, as vias de ligação entre as cidades foram asfaltadas e o transporte público da capital passou por licitação. A Viação Nossa Senhora Aparecida Ltda. ficou de fora da licitação e faliu, um ano depois de ser montada. “Daí meu pai montou um cine foto, que era o que ele sabia fazer. Vim de uma família de fotógrafos”, relata. Daquela época, Getúlio, que trabalhou de cobrador na empresa do pai, guarda uma recordação sobre o transporte da capital. “Os ônibus do meu pai faziam a linha Plano Piloto-Sobradinho. Como a estrada era de terra, na época de chuvas, era preciso colocar correntes nas rodas dos ônibus para eles subirem aquela estrada do Colorado”, afirma.

Getúlio Romão se tornou uma espécie de fotógrafo oficial da cidade e tem dezenas de milhares de fotografias de Taguatinga tiradas nesses 61 anos. Foto: Renato Araújo/Agência Brasília

Sobradinho, a segundinha

Sobradinho foi a segunda cidade-satélite criada para ser a moradia definitiva de trabalhadores da construção de Brasília. A cidade foi fundada em 13 de maio de 1960 para abrigar a população que vivia nos acampamentos de empreiteiras localizadas na Vila Amaury, no Bananal e nas invasões próximas à Vila Planalto, inundadas pelas águas do Lago Paranoá. E, também, os funcionários do Banco do Brasil que vieram transferidos para a nova capital.

A partir de março de 1960, cerca de 30 famílias, diariamente, eram transferidas para a cidade. No final do ano, o local contava com mais de 8 mil famílias. A ocupação das residências ocorreu de maneira ordenada, mas o plano original da cidade sofreu algumas modificações no decorrer de sua implantação com o reparcelamento de algumas quadras.

[Olho texto=”O que desejamos, porém, é que a Taguatinga, a Sobradinho, ao Gama, ao Guará, à Ceilândia e a outras cidades-satélites seja proporcionado o mesmo tratamento que ao Plano Piloto, pois, ali moram seres humanos semelhantes aos que habitam os apartamentos e os palácios de Brasília: os bravos trabalhadores que foram os grandes artífices da obra monumental” assinatura=”Ernesto Silva” esquerda_direita_centro=”centro”]

O comerciante Aristides de Almeida Barreto, 91 anos, foi levado para Sobradinho em 1961, dois anos depois de chegar em Brasília, em maio de 1959. Até então, ele morava em uma invasão nos arredores da Avenida W3 Sul. “Fui obrigado a sair de lá. O caminhão encostou para carregar nossa bagagem. Falaram que a gente tinha que ir para Taguatinga, Núcleo Bandeirante, Gama, Planaltina ou Sobradinho. Escolhi Sobradinho, minha mulher ‘arrupiou”, queria ir para Taguatinga”, conta. “Eu tinha vindo aqui passear uma vez e gostei”, justifica.

Rua em Sobradinho em 1964. Foto: Arquivo Público do DF

Antes da inauguração da capital, ele trabalhava como carpinteiro em uma construtora, mas, nas horas vagas e nos feriados, era camelô. “Desde a Bahia eu gostava de comprar e vender coisas. Montava minha banquinha onde tinha gente, principalmente na W3 e no aeroporto”, conta. Aristides saiu de Araci, município no interior da Bahia, aos 31 anos para tentar a vida na nova capital. “Juntou uma turma e veio, eu nem sabia o que era Brasília. Eu vim sem minha mulher, tinha medo de ser preso, ela não tinha nem 17 anos completos”, relembra. “Mas depois de 90 dias fui buscá-la de pau-de-arara”, completa, referindo-se à mulher, Maria Miranda Barreto, 76 anos.

Aristides de Almeida Barreto, 91 anos, e sua mulher Maria Miranda Barreto, 76 anos, em frente ao Bazar Barreto, aberto em 1962. Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília

Na cidade-satélite, Aristides trabalhou de pedreiro e carpinteiro até abrir, em 1962, o Bazar Barreto, que funciona até hoje. “Quando recebia uma mercadoria, ia do início ao fim da Avenida W3, de loja em loja perguntando o preço. Aí vinha aqui e botava o meu. Se eu tivesse vendendo caro o pessoal não comprava. Aí eu botava igual ou mais barato um pouquinho. Por isso que eu ganhei dinheiro, graças a Deus”, diz. A mulher, que lavava roupas para os operários na invasão, passou a ajudá-lo na loja. “Era aquele tanto de homem, e eles não sabiam pregar nem um botão”, conta Maria, que era cobiçada na época. “Eram quatro irmãs e ela era a mais bonita. Todo mundo queria namorar ela”, diz Aristides Barreto.

Gama, a terceira satélite

As terras que hoje constituem a região administrativa do Gama, a terceira cidade-satélite criada, pertenciam à Fazenda Ipê, Fazenda do Alagado, Fazenda da Suzana, Fazenda Ponte Alta e Fazenda Gama, que acabaram desapropriadas para a construção de Brasília. Em 1959, o Censo Experimental de Brasília, feito pelo IBGE, mostrou que cerca de mil pessoas residiam nessa área.

Obras no Gama em 1964. Foto: Arquivo Público do DF

A cidade foi instituída por lei em 13 de abril de 1960 e inaugurada em 12 de outubro do mesmo ano. Os primeiros moradores foram famílias de trabalhadores oriundas da construção da Barragem do Paranoá e, também, da Vila Amaury, Vila IAPI e Vila Planalto. Posteriormente, a cidade recebeu habitantes do Setor de Indústria de Taguatinga.

A ocupação iniciou-se pelo Setor Leste, quadra 21, onde se localizou o núcleo pioneiro, e depois prosseguiu nas quadras 15, 18 e 22. Em 1970, a cidade já tinha cerca de 72 mil habitantes. O Gama veio a ser instalado a 8 km da primeira edificação construída na área da nova capital: o Catetinho, a primeira residência oficial de Juscelino Kubitschek, cuja obra foi concluída em 10 dias.

E chegam Guará e Ceilândia…

O Guará foi criado em 1969 para abrigar servidores públicos que ainda eram transferidos do Rio de Janeiro, quase uma década depois na inauguração da capital e, em 1971 surgiu Ceilândia, a cidade mais populosa do DF, atualmente. Em 1969, com apenas nove anos de fundação, Brasília já tinha quase 80 mil pessoas que moravam em barracos em diferentes localidades invadidas.

Foi criada, então, a Campanha de Erradicação das Invasões (CEI), o primeiro projeto de erradicação de favelas realizado no Distrito Federal pelo governador Hélio Prates e essa população foi levada para a região ao norte de Taguatinga, nas antigas terras da Fazenda Guariroba.

Ceilândia, a cidade mais populosa do Distrito Federal, surgiu em 1971 com o primeiro projeto de erradicação de favelas realizado no DF. Foto: Museu da Memória Viva de Ceilândia

A Novacap fez a demarcação dos lotes em 97 dias, com início em outubro de 1970. Em 27 de março de 1971, um sábado, o então governador Hélio Prates lançava a pedra fundamental da nova cidade, no local onde está a famosa caixa d’água, um dos ícones ceilandenses. Naquele dia também teve início o processo de assentamento das 20 primeiras famílias da invasão do IAPI.

Pedra fundamental de Ceilândia ficava no local onde está a famosa caixa d’água. Foto: Museu da Memória Viva de Ceilândia

Em nove meses, a transferência das famílias estava concluída e as ruas abertas. Nos primeiros anos, a população carecia de água, de iluminação pública, de transporte coletivo e lutava contra a poeira, a lama e as enxurradas. Como todo início de trajetória.

VOCÊ SABIA? 

  • Ceiândia foi batizada inspirada na sigla CEI e na palavra de origem norte-americana “landia”, que significa cidade (o sufixo inglês estava na moda na época).
  • A primeira vez que um ônibus fez a linha Ceilândia-Plano Piloto foi em 28 de março de 1971, um dia após a chegada da primeira família. Era um coletivo da TCB e a passagem custou 60 centavos.
  • Em 2 de abril de 1971, nasceu, de parto normal, o primeiro ceilandense, Clébio Danton Melo Pontes, filho de Maria Eliete de Melo Pontes e Manuel da Ponte. Clébio se chamaria Ceilândio, mas, graças à interferência de assistentes sociais, o pai do menino mudou de ideia. 

 

E mais um pouco de história…

Na próxima quinta-feira (7/11), o terceiro e último capítulo da série Nascidas com Brasília conta a história da criação do Cruzeiro e do Lago Sul. A primeira cidade, erguida praticamente dentro do Plano Piloto. Já o Lago Sul, bem mais distante, quase não saiu do papel e só se consolidou após a construção das pontes, que o aproximaram de Brasília. Confira.