28/08/2020 às 17:53

As raras fotos do imigrante polonês apaixonado por Brasília

Trabalho de Jankiel Gonczarowska guarda registros humanizados de obras na construção da capital

Por Agência Brasília * | Edição: Renato Ferraz

É possível tirar o sustento de uma família de 14 filhos trabalhando como fotojornalista sem deixar de fazer enquadramentos delicados? Se quem estiver com o olho colado ao visor for um judeu polonês cujos pais migraram para o Brasil a fim de escapar do genocídio nazista, trazendo na bagagem sonhos de liberdade, a resposta é sim. O trabalho apaixonante de Jankiel Gonczarowska foi descoberto pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) por intermédio da Subsecretaria do Patrimônio Cultural (Supac), em sua rotina de busca por imagens para o projeto Imagem e Memória Candanga, que divulga fotos antigas da capital.

Foto: Jankiel Gonczarowska/Arquivo pessoal

O nome difícil de pronunciar de Jankiel Gonczarowska (1924-1988), mais conhecido como “seo” Jankiel – conta a filha Sandra Gonczarowska Mussi, psicóloga, radicada hoje no Canadá –, contrastava com a prosa fácil do fotógrafo que se mudou com a família do Rio para Brasília em 1961, incumbido de registrar os primeiros passos da infante capital. Foi escolhido pelo próprio Samuel Wainer, que havia fundado o jornal ‘Última Hora’ dez anos antes, atento aos ventos de modernidade que cercavam os arroubos de Juscelino Kubitschek.

“Papai conviveu de maneira próxima com muitos presidentes desde Getúlio Vargas. Os respeitava muito, mas não perdia de vista o lado humano deles”, conta Sandra. Isso acabou sendo verdade sobre algumas primeiras-damas também. Certa feita, conta Sandra, seu pai acompanhava a então primeira-dama Marly Sarney, que havia mandado colher mandiocas cultivadas na Granja do Torto, residência presidencial. “Venha aqui, ‘seo’ Jankiel. Leve isso para os seus filhos, sei que o senhor tem muitos”, conta ela. Casado em segundas núpcias com companheira que conhecera no Rio e que já contava três filhos, tiveram outros onze.

Sandra diz que Jankiel amava a capital que JK fizera brotar no Cerrado. “Cada construção que se levantava na cidade era motivo de alegria para ele, como se fosse um melhoramento em nossa casa”, recorda. São muitos os registros do fotógrafo em que se reconhecem as silhuetas do que hoje é o Congresso Nacional, a Catedral Metropolitana ou o Palácio do Planalto.

“Frequentemente, ele colocava minha mãe e familiares no carro e os levava para os monumentos da cidade, apenas para poder fotografar, dando o toque humano que era tão importante para meu avô, nesse jogo com a vastidão do mármore, do céu e do concreto”, poetiza o neto Marcelo Gonczarowska Jorge, sobrinho de Sandra, artista plástico e, hoje, servidor da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec).

O tal “toque humano” sobressai no trabalho de Jankiel que aos poucos vai sendo garimpado pela Subsecretaria do Patrimônio Cultural da Secec e o coloca entre outros grandes fotógrafos da construção da capital – o mecânico de aviões Mário Fontenelle (1919-1986), que recebeu sua primeira câmera das mãos de JK, de quem se tornou fotógrafo oficial; o húngaro Thomaz Farkas (1924-2011); ou o francês Marcel Gautherot (1910-1996), tido como o preferido do urbanista Lúcio Costa.

A gerente de acervo da Supac, Aline Ferrari, foi quem descobriu as fotos do fotógrafo pioneiro que chegou ao Brasil em data imprecisa, contando cerca de cinco anos de idade, com os pais e a irmã. A família, que não falava uma palavra de português, desembarcou no Rio de Janeiro. Fugindo também do calor da cidade praiana, preferiu se estabelecer em Porto Alegre, onde a latitude meridional e a presença de outros poloneses amenizavam o impacto da diáspora. Lá construíram a vida como alfaiates, abrindo mais tarde uma loja de roupas.

“Pouco antes da quarentena na pandemia da Covid-19, eu estava procurando imagens para o projeto ‘Imagem e Memória Candanga’ [sobre a retirada dos moradores da invasão do Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira para a Ceilândia]. Foi quando dei, por acaso, com as fotos de Jankiel e reparei que o sobrenome era o mesmo de um colega de trabalho”, conta Aline.

Ela já localizou doze fotografias de Gonczarowska na parte pesquisada de um montante de 4 mil registros em papel guardados pela Secec, volume que aos poucos vai sendo catalogado para digitalização pelo Arquivo Público do Distrito Federal, numa parceria de formiguinha sobre a construção da memória da sexagenária capital.

“Marcelo me confirmou que eram do avô dele. E aí, não acreditei na coincidência!”, espanta-se Aline. “Tinha achado as fotos sensíveis e bonitas e passei a prestar atenção no material que surgia creditado com o nome dele”, relata a servidora.

A sensibilidade de “seo” Jankiel é reconhecida por fotógrafos do porte de Orlando Brito (1950), mineiro de Janaúba, um autodidata que em 1965 se inicia na profissão como laboratorista da “Última Hora”, na sucursal em Brasília, tornando-se depois fotógrafo do periódico e, reconhecidamente, uma das referências nessa arte.

Sandra se encontrou com Brito no enterro de Jankiel e reproduz emocionada para a reportagem da Secec o testemunho de outro apaixonado pela capital do país e também testemunha de acontecimentos políticos contemporâneos: “Sandra, tudo que sei, não de técnica, mas de sensibilidade no olhar, aprendi com seu pai”.

Essa percepção da veia humanista do pai é compartilhada pela filha, ela própria iniciada no ofício de laboratorista e fotógrafa por Jankiel, com quem trabalhou no antigo Arquivo Nacional em Brasília, antes de trocar os rolos de filmes e as lentes das câmeras analógicas pelas imagens que a psicologia de Freud revela.

Isso a levou a pesquisar e reunir material para escrever um livro. Com o título provisório Jankiel Gonczarowska, Retratista da Vida, Poeta da Imagem, a obra conta a história do fotógrafo e reproduz mais de 180 fotos, a maioria com a lendária Rolleiflex.

Os cliques compilados por Sandra imortalizam desde craques da Seleção Brasileira de 1954, como Didi, quando os canarinhos perderam nas quartas-de-final para a Hungria, na Copa da Suíça, a matérias premiadas em grandes veículos da época – Manchete, Manchete Esportiva e O Cruzeiro –, passando pelo diário de Wainer, Isto É e O Globo. Isso, além dos registros do nascimento da capital.

“Ainda não sei quando o livro vai sair. Com a pandemia, as coisas ficaram mais difíceis. Mas quero prestar essa homenagem ao meu pai. Quero que as pessoas possam se emocionar como quem conviveu com ele se emocionava. Como até hoje ficamos tocados pelas fotos que contam a história de Brasília”, justifica.

* Com informações da Secretaria de Cultura