02/05/2019 às 14:54, atualizado em 19/07/2019 às 16:06

O comandante da construção de Brasília

Pioneiro de primeira ordem, Israel Pinheiro, na condição de braço direito de JK, foi o primeiro presidente da Novacap e primeiro prefeito da cidade

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília

Pioneiro, primeiro presidente da Novacap e primeiro prefeito de Brasília, Israel Pinheiro inspeciona as obras do Palácio da Alvorada. Foto: Arquivo Público

Brasília ainda era um descampado de terra e mato no coração do Planalto Central, quando um grupo de japoneses chegou à região, no final de 1956, com a pretensão de desenvolver no lugar, granjas e pomares. Conhecidos pela habilidade no manejo da terra e especialistas em assuntos agrários, os orientais olharam tudo e ficaram preocupados com a aspereza e baixa fertilidade do solo. Um jornalista que acompanhava a turma levou a questão a Israel Pinheiro – o primeiro presidente da Novacap e, também, o primeiro prefeito de Brasília – que fulminou:

– Uai! Se fosse boa, pra que japonês?!

Pouco tempo depois, em agosto de 1957, o primeiro núcleo de imigrantes japoneses se instalaria no DF. O episódio, exemplar, dá a medida certa da personalidade de um homem prático e enérgico que foi determinante na realização do sonho de JK de construir a nova capital do país. A ponto de todos aqueles que conhecem de perto essa grande epopeia do Brasil moderno serem unânimes em dizer: sem Israel Pinheiro, Brasília não existiria.

“Ele brigou com Lucio Costa, com Oscar Niemeyer, com Bernardo Sayão, com tudo e todos, para cumprir a promessa de inaugurar Brasília em 21 de abril de 1960”, lembra a jornalista Conceição Freitas. Autora do livro “Bravos Candangos” e grande entusiasta da história de nossa cidade, ela destaca o estilo severo e íntegro do pioneiro. “Foi o feitor, o comandante, o manda-chuva, o executivo. Era duro, até onde se sabe honesto, não gostava de jornalista e menos ainda dos muitos pedidos de benevolências”, conta.

Honesto era mesmo. Certa vez, um empresário da construção civil, bastante empolgado por ter ganhado concorrência de uma obra na cidade, tentou lhe agradar com um “presentinho”, ao que foi severamente repreendido. “O senhor me sai daqui e leve esse embrulho para casa senão vai perder a concorrência”, esbravejou.

Pioneiro madrugador
Mineiro de Caeté, nascido no final do século 19, Israel Pinheiro era o braço direito de JK, “cabra” de confiança do presidente para assuntos de obras e política. Formado em engenharia pela Escola de Minas de Ouro Preto, com especialização em siderurgia, acalentava, junto com o chefe, o desejo de transferir a capital do país para o interior. Aliás, quando ambos eram deputados federais por Minas Gerais, nos anos 40 e 50, queriam e brigaram para vê-la cravada no Triângulo Mineiro. A ideia não vingou.

“Meu filho, que sorte nós tivemos, eu ter perdido aquela luta na Constituinte, que aqui é muito melhor do que o Triângulo Mineiro”, confidenciaria, algum tempo depois, ao filho, assim como o pai, também Israel Pinheiro.

Por sina, competência ou espírito voluntário, antes e depois da construção da nova capital, Israel Pinheiro habituou-se, na vida pública, a ser pioneiro em tudo. No início dos anos 40, por exemplo, designado por Getúlio Vargas a constituir a Companhia Vale do Rio Doce, seria o primeiro presidente da empresa.

Em Brasília, foi o número um na construção da cidade e dos primeiros que aqui chegaram, fazendo questão de pilotar, para cima e para baixo, uma Rural Willys que trazia estampada em destaque, no para-brisa, papel colado com o algarismo 1. Natural que fosse, dada às circunstâncias, o primeiro presidente da Novacap e, também, o primeiro prefeito de Brasília.

“Dr. Israel foi um dos primeiros a chegar a Brasília, se hospedando num dos quartos do Catetinho com a (mulher) D. Coracy. Depois eles foram para a Granja do Ipê. Era muito religioso e caseiro”, recorda o cearense Adirson Vasconcelos, que aqui chegou em maio de 1957, com a missão de cobrir o início das obras da capital, simbolizada pela Missa Campal, então realizada na Praça do Cruzeiro. Veio e ficou. “Não era um homem fácil de lidar, de pouca conversa, quem nos salvava era o Dr. Chagas, seu chefe de gabinete, um sujeito muito diplomático”, conta.

Incansável
Madrugador incansável, todos os dias, das 6h da manhã, às 20h da noite, era visto correndo os canteiros de obras, dando ordens, checando, delegando serviço aos milhares de trabalhadores que, em novembro de 1956, formavam um pequeno batalhão de 232 homens, chegando a cerca de 3 mil operários, em 1957, com mais de 200 máquinas correndo em ritmo frenético. Era temido e respeitado pela “peaõzada”. Se existia uma coisa que Israel Pinheiro odiava era burocracia.

“Ele não parava. A coisa mais rara de se ver era ele no escritório da Novacap, que na época, ficava na Candangolândia”, volta no tempo, o jornalista pioneiro Adirson Vasconcelos.

Uma imagem clássica dos primeiros dias de vida de Brasília, registradas pelo francês Jean Manzon, que corre o mundo, é a de Israel Pinheiro e Juscelino Kubistchek perambulando juntos por entre os primeiros prédios da Esplanada. Era uma prova, mais do que concreta, de que Brasília estava acontecendo, o sonho se tornava realidade.

Devoto de Dom Bosco, queria porque queria que o religioso, protagonista de uma das lendas mais famosas em torno da criação da cidade, fosse o padroeiro de Brasília. Mas acontece que Juscelino Kubistchek, outro religioso empedernido, tinha planos para Nossa Senhora Aparecida. De qualquer forma, ergueu um santuário ao seu protetor, onde, volta e meia, aparecia para lhe dar broncas.

“Quem me contou isso foi o seu motorista. Um dia eles estavam na Ermida Dom Bosco e o escutou ralhando duramente com o santo porque ele não tinha ajudado com o asfalto ou a entrega de determinada obra. Coisas de Dr. Israel”, diverte-se Adirson Vasconcelos.

Pioneiro subestimado
Mas há quem disse e diga que a história foi injusta com Israel Pinheiro, relegando o grande comandante da construção de Brasília a mero papel de coadjuvante entre os principais pioneiros dessa cidade modernista e inspiradora. Oscar Niemeyer mesmo, “que vestiu as áreas e escalas traçadas por Lucio Costa com sua arquitetura”, foi um dos que reclamaram o reconhecimento devido ao amigo.

“Às vezes eu acho que se fala pouco sobre o Israel Pinheiro. Ele foi importantíssimo. Sem ele, Brasília não seria feita. Era um sujeito empreendedor, ativo, que se dedicou à Brasília, inteiramente, honesto. Foi fantástico”, disse o arquiteto numa entrevista à TV Senado.

O polêmico dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues também atesta a importância de Israel Pinheiro. “Desde Brasília, foi talvez o homem público mais caluniado deste país. E o dramático é que ele era, a um só tempo, célebre e desconhecido”, constatou numa crônica publicada no jornal O Globo, um dia depois da morte de Israel Pinheiro, em julho de 1973.

Reconhecido ou não, lembrado ou esquecido, uma coisa Brasília e seus moradores, pioneiros ou contemporâneos, jamais poderão e conseguirão fazer. Apagar da poeira vermelha do cerrado os rastros deixados pelo homem que era sinônimo de trabalho e tanto fez pela cidade.