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09/05/2019 às 10:20, atualizado em 19/07/2019 às 16:06
Médico e militar, o pioneiro que chegou ao território da capital anos antes de JK não foi mais embora e, até seus últimos dias, atuou como ferrenho defensor da cidade
Quando colocou os pés no solo vermelho do Cerrado pela primeira vez, Ernesto Silva já antevia a descoberta. Em fevereiro de 1955, ele sentiu – e relatou, em publicações – que o espaço mais alto no centro do país era ideal para a construção da nova capital. Médico, militar e grande entusiasta da fundação da cidade, Ernesto é um importante personagem da história de Brasília. O homem franzino, que ostentava certa barriga protuberante, dirigiu a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) e, até seus últimos dias de vida, foi um combativo defensor da cidade.
Carioca, Ernesto passou quase dois terços da vida no DF. Morou em um dos primeiros prédios construídos na Asa Sul, sob as árvores que viu crescer, e ali ficou até fevereiro de 2010, quando, aos 95 anos, faleceu. Ao longo da trajetória, o pioneiro, que se intitulava militante da esperança, foi fiscal da história que ajudou a escrever. “Era impressionante”, lembra Sônia Souto Silva, 81, sua terceira companheira, ao lado de quem ele passou os últimos 15 anos de vida. “Se tivesse alguém que gostasse mais de alguma coisa na vida, era o Ernesto com esta cidade.”
Nas ruas, ele velava os feitos. Certa vez, conta a viúva, o pioneiro desceu do prédio para brigar com policiais que haviam estacionado sobre a calçada. “Vocês sabem como foi difícil construir essa cidade para virem quebrar tudo?”, questionou o médico, enfrentando as autoridades. Ernesto exigia cuidado. “Me emociono de saber da capacidade, vitalidade, dedicação e amor dele por Brasília”, revela Sônia.
Familiares, contemporâneos e historiadores são unânimes em dizer que Brasília era a grande paixão da vida do médico, ideia que ele não se cansava de confirmar. Em entrevista ao Arquivo Público em 2007, ele disse: “Nós construímos a capital inteira de dentro do Cerrado. Sem coisa nenhuma, sem computador, sem fax, sem uma porção de coisas. É por isso que o povo e as autoridades daqui devem reconhecer a dificuldade, o sacrifício de milhares de pessoas. Então, você precisa respeitar essa cidade, preservar essa cidade, porque senão nós não temos história”.
A viúva conta que tamanho entusiasmo custou a Ernesto os primeiros casamentos. O primeiro teria terminado porque a esposa não queria se mudar do Rio de Janeiro para a capital. Por sua vez, a segunda companheira nutria um desejo de voltar às terras cariocas, o que teria prejudicado a relação. A terceira diz que nunca pensou em mudar. “Não correria esse risco”, brinca. Ao lado da ex-professora, ele viveu por 15 anos, até partir, por complicações de uma pneumonia, após seis meses internado. E deixou registrado um pedido: que jamais fosse enterrado fora dos limites do quadradinho.
[Olho texto=”Nós construímos a capital inteira de dentro do Cerrado. Sem coisa nenhuma, sem computador, sem fax, sem uma porção de coisas. É por isso que o povo e as autoridades daqui devem reconhecer a dificuldade, o sacrifício de milhares de pessoas. Então, você precisa respeitar essa cidade, preservar essa cidade, porque senão nós não temos história.” assinatura=”Ernesto Silva” esquerda_direita_centro=”direita”]
O historiador Elias Manoel, gerente de Difusão do Arquivo Público do Distrito Federal, reforça a teoria de que a relação com Brasília tenha influenciado os dois primeiros casamentos de Ernesto. “Ele nunca disse explicitamente, mas o envolvimento dele era tão absurdamente grande que se pode relacionar [ao fato de os casamentos terem fracassado]”, avalia. “A dedicação exclusiva que deu para a criação de Brasília teve seus danos colaterais para sua vida pessoal.”
Conhecidos de Ernesto dizem que ele era sério, mas também sabia ser brincalhão. Bem-humorado, dançava de mãos erguidas. Gostava de samba e de música clássica. Torcia ferozmente pelo Fluminense, clube carioca do qual chegou a ser sócio. Tinha disposição e saúde invejáveis. Não tomava remédios e nunca fez exercícios. “Ele dizia que só tinha alergia à burrice”, conta Sônia. Em entrevista ao Arquivo Público, ele revelou a fórmula para viver mais: “Coma pouco, trabalhe, tenha autoestima e compaixão”.
O médico mineiro Célio Menicucci, de 87 anos, conheceu Ernesto em 1958. Os dois se tornaram amigos em pouco tempo. Testemunha da história do pioneiro, ele conta que a casa de Ernesto era ponto de encontro dos camaradas. “Sempre tinha cantoria. Ele gostava de Noel Rosa e eu aproveitava para cantar. Ernesto foi muito divertido e alegre, mas também um baixinho que adorava uma guerra”, rememora.
O jornalista Jarbas Marques teve seu primeiro contato com o pioneiro quando veio cobrir a construção da nova capital do Brasil, em 1959. “Em 30 anos, fizemos juntos 300 palestras”, conta. “Ele ligava pra mim de manhã cedo e perguntava sobre a agenda. Botei ele pra cantar samba nos 50 anos do Catetinho com a primeira cantora de Brasília, Glória Maria.” Jarbas lembra outra característica do pioneiro: “Tinha tara por bacalhau.”
Orgulhoso de fazer parte da história da cidade, Ernesto Silva fundou a Associação dos Candangos Pioneiros, na qual teve participação ativa até o fim de seus dias. Funcionários da entidade contam que sua passagem nunca era despercebida e que ele costumava distribuir abraços na chegada.
Carioca de Vila Isabel, Ernesto Silva nasceu em 17 de setembro de 1914 – no horóscopo chinês, o ano do tigre, animal que ama a ação. Com sete irmãos, tinha o sonho de ser médico, mas a família não conseguia custear o curso. Em 1933, formou-se em ciências e letras. Três anos depois, tornou-se oficial do Exército, chegou ao posto de coronel e serviu no Ministério da Guerra, onde se aproximou de marechal José Pessoa, outro protagonista da história da capital. Em 1936, formou-se em veterinária pelo Exército e concluiu o curso de medicina dez anos depois, com especialização em pediatria.
[Olho texto=”Não fosse por ele, Brasília não teria sido inaugurada três anos e dez meses depois do início das obras.” assinatura=”Elias Manoel, historiador” esquerda_direita_centro=”esquerda”]
Ele é chamado de “Pioneiro do Antes” porque sua história com Brasília é anterior à aprovação oficial ao projeto da nova capital. Já o historiador Elias Manoel o considera o “Adão de Brasília”, e explica: “Chegou quando o paraíso ainda não existia”. Ernesto, conta, foi protagonista da concepção e construção da capital: elaborou o edital do concurso de projetos vencido por Lucio Costa, viabilizou a demarcação do território e desapropriação e deixou tudo pronto para que o projeto saísse do papel. “Não fosse por ele, Brasília não teria sido inaugurada três anos e dez meses depois do início das obras”, analisa o historiador.
No currículo, Ernesto teve ainda registrados os cargos de secretário da Comissão de Localização da Nova Capital do Brasil (1953-1955) e de presidente da Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal (1956). Também foi o primeiro diretor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), onde ficou responsável pelo Departamento de Saúde e Educação. Era fluente em inglês, espanhol e francês e ainda “arranhava” o alemão.
Foi responsável pelo planejamento e implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) de Brasília e organizou a construção do primeiro hospital distrital (atual Instituto Hospital de Base). Além disso, conseguiu que Lucio Costa alterasse o projeto original da cidade para incluir o modelo de escolas parque, proposto pelo educador Anísio Teixeira para organizar o ensino básico no Brasil.
Quatro meses após a cremação de seu corpo, Ernesto Silva teve o acervo doado pela viúva, Sônia, ao Arquivo Público. Em 2010, amigos pioneiros imortalizaram a imagem do pioneiro com a instalação de um busto de bronze no lugar onde Juscelino Kubitscheck tomou um café no Planalto Central pela primeira vez – atualmente, o Country Club.