13/06/2019 às 10:00, atualizado em 19/07/2019 às 16:06

Joaquim Cardozo, o poeta dos cálculos

Como o engenheiro calculista pernambucano deixou um legado inestimável para os traços arquitetônicos de Niemeyer em trabalhos como o Congresso e a Catedral

Por Lúcio Flavio, da Agência Brasília

Em meados de 2017 a polêmica estava instalada. Afinal, a ponte que liga o Setor de Clubes Sul à Península dos Ministros e Quadra 11 do Lago Sul deveria continuar se chamando Costa e Silva ou mudar para Honestino Guimarães? Foi quando o jornalista e colunista do Correio Braziliense Severino Francisco colocou mais lenha na fogueira. Porque não nomear a estrutura projetada por Oscar Niemeyer em 1967 de Joaquim Cardozo?  A campanha ganharia adeptos de peso. Entre eles, o cineasta Vladimir Carvalho. Mas quem era, enfim, Joaquim Cardozo?

“Sem ele os voos rasantes de imaginação riscados por Oscar Niemeyer permaneceriam eternamente no papel. Com audácia e rigor, Cardozo contribuiu decisivamente para erguer prédios e palácios de concreto que parecem mal tocar no chão”, escreveu o jornalista, numa crônica de julho daquele ano.

“O encontro de Joaquim Cardozo com Oscar Niemeyer foi um pacto espiritual mediado pela matemática, um consórcio de dois gênios, fechou o tempo”, poetiza o veterano Vladimir Carvalho, em entrevista ao portal da Agência Brasília.

E é verdade. Engenheiro calculista pernambucano pioneiro de Brasília, Cardozo foi decisivo para que os rabiscos líricos de Oscar Niemeyer ganhassem forma no pesado e duro concreto armado tão presente nas edificações da cidade. Os dois se conheceram nos anos 40, no extinto Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (SPHAN), hoje Iphan. Especialista em cálculos de estrutura, Cardozo chamou atenção do jovem arquiteto pela inteligência e sensibilidade. Nasceria ali uma amizade fraterna para toda uma vida.

O primeiro trabalho que fizeram juntos foi o Complexo da Pampulha, em Belo Horizonte. Para muitos especialistas, Brasília começaria ali. Basta conferir as formas onduladas do projeto para perceber que a engenharia poética de Joaquim Cardozo se fazia presente.

Materializar ideias

Como pioneiro da nova capital, o engenheiro deixaria um legado inestimável para os traços arquitetônicos de Niemeyer. Porque só ele, diante de alfarrábios quilométricos ou um quadro negro com equações enormes que fariam corar Albert Einstein, calculava e extraia resultados que pudesse materializar as ideias do amigo.

E tudo na mão, com ajuda apenas de uma calculadora de engenheiro. Certa vez, Oscar Niemeyer mandou alguns desses projetos para engenheiros com modernos computadores nos Estados Unidos e Japão. Todos sustentaram, categoricamente, que as obras previstas em seus desenhos não ficariam de pé. “Nas mãos do Joaquim Cardozo, as toneladas de concreto e ferro que exigiam os projetos do Oscar Niemeyer se tornavam aladas, leves…”, constata Severino Francisco, também em depoimento ao portal do GDF.

“O Oscar fazia suas ‘pirâmides invertidas’ e o calculista que se virasse para pôr aquilo em pé por meio de métricas e escalas matemáticas. Esse era o Joaquim Cardozo”, conta, rindo, Vladimir Carvalho.

Curvas metafísicas

A participação de Joaquim Cardozo na arquitetura de Oscar Niemeyer é perceptível em detalhes de monumentos marcantes espalhados pela capital. Tal qual uma obra de arte a céu aberto, pode ser contemplada nas colunas sensuais dos palácios da Alvorada e do Planalto, nas curvas metafísicas da Catedral Metropolitana e Igrejinha, na organização uniforme dos arcos do Itamaraty, nas cúpulas perfeitas do Congresso Nacional.

Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília

Catedral Metropolitana de Brasília: colunas e curvas

Aliás, a abóboda invertida da Câmara dos Deputados foi uma novela à parte, um exemplo notável da genialidade do engenheiro calculista. Revestido de três camadas de concreto armado, anéis de compressão, lajes, tirantes e pilares, tudo arranjado dentro de estrutura complexa, o projeto ousado de Niemeyer exigiu uma tangente específica, precisa, para que se concretizar, na prática, do jeito que ali está.

Joaquim Cardozo se debruçou dias e noites sobre cálculos quase infinitos, varando madrugadas quando, num belo alvorecer… Eureca! Empolgado, não titubeou. O Sol nem bem havia riscado o horizonte e lá estava o engenheiro acordando o arquiteto para falar sobre a novidade.

Poeta que calculava

Mas, antes de se perder pelos labirintos e meandros das ciências exatas, Joaquim Cardoso se apaixonou, perdidamente, pelo mundo das artes. Era um poeta que calculava. Ou melhor, um engenheiro amante das letras, íntimo das palavras, autor de textos primorosos tanto na área da poesia, quanto na dramaturgia. Para aqueles que se espantavam com tal incongruência ele tinha a resposta na ponta da língua.

Foto: Arquivo Público do DF

Joaquim Cardoso: engenheiro amante das letras, íntimo das palavras

“Não visualizo qualquer incompatibilidade entre poesia e a arquitetura. As estruturas planejadas pelos arquitetos modernos são verdadeiras poesias. Trabalhar para que se realizem esses projetos é concretizar uma poesia”, desconversava.

Os primeiros versos que escreveu datam do final dos anos 20. Para se ter uma ideia do talento do engenheiro na área, era admirado pelos conterrâneos Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. O mineiro Carlos Drummond de Andrade também era um fã confesso.

Cultura regional

Só peças teatrais deixou seis, grande parte delas resgatando aspectos da cultura regional nordestina  – em Recife, há hoje um teatro com seu nome. Contudo, tímido e avesso à badalação, deixou boa parte desse material escondido na solidão escura das gavetas de sua casa ou na intimidade da memória prodigiosa que tinha. O primeiro livro de poesia só seria publicado aos 50 anos, depois de muita insistência dos amigos.

“O Joaquim era um autêntico homem da renascença, o nosso Da Vinci, de uma inteligência monumental, poliglota, falava oito idiomas, um gênio, não à toa que o Niemeyer dizia que ele era o ‘brasileiro mais culto que existia’”, destaca o paraibano Vladimir Carvalho, que se apaixonou pela sua obra nos anos 40, ainda menino, lendo jornais onde eram publicadas poesias de Cardozo.

“O cara traduzia poesia do sânscrito, seus poemas eram bem fluídos e traziam evocações sentimentais, existenciais e espirituais que influenciaram o João Cabral a escrever ‘Morte e Vida Severina’”, endossa o jornalista e professor Severino Francisco.

Tragédia

Mas como nem tudo na vida são flores, uma tragédia profissional marcaria para sempre a vida de Joaquim Cardozo. Por sina, coincidência ou osmose, envolvendo outros dois nomes dos tempos de pioneirismo em Brasília: Israel Pinheiro e o amigo Oscar Niemeyer. E, curiosamente, fechando um ciclo que começou em Belo Horizonte, cidade que selaria sua ligação com a nossa capital. Era fevereiro de 1971, governo do mineiro Israel, quando o desabamento do Parque da Gameleira na capital mineira colocaria em dúvida a credibilidade da engenharia civil brasileira.

A construção, que contava com a participação do arquiteto e do engenheiro civil, teve os alicerces ruídos e a estrutura de 10 mil toneladas, desabou, matando 69 trabalhadores e ferindo outros 100 operários. Mesmo detectado pela perícia como erro de execução da empreiteira e não de cálculo, Joaquim Cardozo teve seu nome envolvido com a Justiça. Bastante abalado com o episódio, mesmo depois de absolvido do acidente, o engenheiro encerraria suas atividades como calculista, morrendo pobre e deprimido.

“Grande humanista que foi Oscar Niemeyer o amparou até os últimos dias”, lembra Vladimir Carvalho. “O Oscar tinha dessas coisas, foi um homem muito generoso e solidário com os amigos”, emenda.

Coadjuvante?

Sempre colocado em segundo plano ou relegado a mero papel de coadjuvante na construção de Brasília, a importância de Joaquim Cardozo na origem da cidade tem que ser mais exaltada e reconhecida, defende Severino Francisco.

Para ele, a arquitetura de Oscar Niemeyer só teve relevância e reconhecimento internacional, graças à ousadia e coragem de Joaquim Cardozo, que peitava as “loucuras” do arquiteto.

Estátua de Joaquim Cardozo, na ponte Maurício de Nassau, no centro do Recife: homem de sorriso tímido


“É sintomático que poucas pessoas se lembrem do Joaquim Cardozo; muitas, aliás, nem sabem o quanto ele foi importante para a história de Brasília e fundamental nas construções. Não tem estátua, não é nome de praça, ponte, nada”, lamenta Francisco.