25/06/2019 às 12:00, atualizado em 25/06/2019 às 14:11

Um cargo público que exige intensa dedicação

Encarregado de garantir os direitos da criança e do adolescente, o conselheiro tutelar tem uma difícil missão que exige dedicação integral, carinho e sensibilidade

Por Gizella Rodrigues, da Agência Brasília

Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília

Eles colecionam histórias. Muitas com final feliz, outras nem tanto. Em comum, a dedicação integral, o trabalho árduo e a satisfação de, muitas vezes, proteger vidas. Mais do que ocupar um cargo público, ser um conselheiro tutelar exige carinho e sensibilidade no cumprimento da difícil missão de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes. Apesar de todos os percalços, eles garantem: é recompensador. A Agência Brasília ouviu duas pessoas que, tendo experiência como conselheiras tutelares, falam sobre os principais atributos da função. Ambas estão com nomes fictícios, para preservar  suas identidades.

O Conselho Tutelar é o órgão encarregado de garantir os direitos da criança e do adolescente e o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conforme a Lei Federal 8.069/1990. Negligência, abandono, maus-tratos, crueldade, abuso, discriminação, exploração, violência psicológica, física ou sexual – basta a criança se encontrar sob simples ameaça em uma dessas  situações para que o Conselho Tutelar atue. “Nós funcionamos como um verdadeiro braço da família”, resume a conselheira Maria Goretti.

O Distrito Federal tem 40 conselhos tutelares, todos vinculados administrativamente à Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania (Sejus). Cada conselho é composto por cinco integrantes, que, escolhidos pela comunidade, trabalham juntos durante quatro anos. O Conselho Tutelar atende crianças e adolescentes que têm direitos violados ou ameaçados, seja pelos pais ou responsáveis, pela sociedade, pelo Estado ou, ainda, em razão da sua própria conduta.

Em um único mandato, Maria Goretti reuniu histórias que poderiam ter acontecido ao longo de dez anos de carreira. Ao longo de sua experiência, ela percebeu que as localidades com grande concentração de famílias carentes são as que costumam apresentar maiores demandas pela atuação dos conselheiros. “Atendemos famílias que têm sete filhos dentro de um apartamento minúsculo e que precisam de creche, escola, saúde, tudo”, explica. “Os pais são catadores, não conseguem creche para os filhos. As mães precisam trabalhar, e acabam levando os filhos junto. A criança fica em situação de vulnerabilidade total.”

Creches

A procura por vagas em creches é uma grande demanda e, normalmente, sinaliza o primeiro contato do Conselho Tutelar com a família. Crianças de zero a 5 anos têm direito ao atendimento em creches e pré-escolas. Quando as famílias não conseguem vagas, procuram o Conselho Tutelar – que, com poder de aplicar medidas para garantir esse direito, encaminha uma requisição emergencial à regional de ensino, procedimento a partir do qual as famílias ganham 25 pontos e passam na frente de outras. Se a resposta for negativa, o Conselho Tutelar tem a prerrogativa de encaminhar o caso para a Defensoria Pública ingressar com processo judicial contra o Estado.

[Olho texto=”Muitas vezes é o conselheiro tutelar o primeiro a chegar ao local onde um menino ou menina está sofrendo algum abuso ou maus-tratos. É esse profissional que tem que acolher essa criança e tomar as medidas necessárias para sua proteção” assinatura=”Gustavo Rocha, titular da Secretaria de Justiça” esquerda_direita_centro=”direita”]

O mesmo acontece com vagas em escolas. Foi com a ajuda do Conselho Tutelar que Loíde Fernandes da Silva, 41 anos, conseguiu escola para a filha de 10 anos. No ano passado, a família se mudou e não encontrava vaga para a menina nas escolas da nova localidade. “Só achava no Plano, e eu não conseguia pagar o deslocamento dela”, conta Loíde, que atualmente está desempregada. “O escolar mais barato custava R$ 180.” Felizmente, o problema foi resolvido, e a menina já está matriculada em uma escola que Loíde considera “a melhor da cidade”.

Os conselheiros também ajudaram o filho mais velho de Loíde que, aos 17 anos, estudava só à noite. “Ele passava o dia todo à toa, só queria saber de ficar na rua com os amigos e jogar videogame”, relata ela. Por intermédio dos conselheiros, o garoto agora está matriculado em um curso profissionalizante na área de recursos humanos. “Pagaram até a passagem que ele vai gastar em dois meses de curso”, valoriza a mãe. “Contei a história para duas amigas e os filhos delas também fazem esse curso. Uma outra amiga conseguiu, com ajuda do Conselho, creche para a filha dela de 4 anos. Se não fosse isso, ela não conseguiria trabalhar. Se tivesse outra palavra maior que importante, eu falaria. Eles ajudam muito a comunidade, que é muito carente.”

O Conselho Tutelar também pode encaminhar a família ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) para que ela seja inserida em programas sociais, como o Bolsa Família. Da mesma forma, a pessoa assistida pode ser direcionada a outros serviços – como o Centro de Referência, Pesquisa, Capacitação e Atenção ao Adolescente em Família (Adolescentro), que oferece tratamentos em saúde mental, dificuldade de aprendizagem e violência sexual; ou o Centro de Atendimento Integrado 18 de Maio, que tem atendimento público para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, visando à proteção integral. “Somos grandes requisitadores de serviços; a gente encaminha as demandas para os órgãos competentes”, explica Maria Goretti. “Trabalhamos em rede e isso é muito importante. Com todos os órgãos articulados, conseguimos tratar melhor o problema de uma família.”

Abuso sexual

O maior volume de demandas em algumas localidades atendidas, conta Goretti, é gerado pela falta de equipamentos públicos – como creches, escolas e hospitais – e políticas públicas que permitam a inserção dos adolescentes no mercado de trabalho. Os conselheiros, porém, constantemente precisam lidar com casos mais graves, que envolvem violência, maus-tratos e abuso sexual. Até hoje, a conselheira se lembra, em detalhes, do seu primeiro atendimento, feito em 2016, no caso de uma criança de 9 anos que era abusada pelo tio.

“Ela nunca tinha falado e entrou na minha sala já falando”, lembra. “Era um caso crônico, não cabia a aplicação de nenhuma medida de proteção. Tive que abrigar a menina. Fiquei várias noites pensando naquela criança. Comecei a fazer terapia depois que virei conselheira.”  No Conselho Tutelar no qual Maria Goretti atua são recebidas, em média, cinco denúncias de suspeitas de abuso sexual por dia. Segundo a conselheira, 95% dos abusadores estão no núcleo familiar ou muito próximos a ele – um tio, um padrasto, um vizinho e até o pai.

[Olho texto=”Nós funcionamos como um verdadeiro braço da família” assinatura=”conselheira Maria Goretti (nome fictício)” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Outro caso que marcou a atuação de Goretti foi um chamado feito pela comunidade a uma boca de fumo. Chegando lá, as conselheiras se depararam com uma cena chocante: uma adolescente, drogada, segurava no colo seu filho, um bebê de meses, e carregava uma faca na outra mão. “Os policiais queriam invadir a ‘boca’, os traficantes estavam todos encostados no muro, foi tenso. A sorte é que eu e outra conselheira conseguimos fazer a menina largar a faca, e, com ajuda do chefe do tráfico, localizar a irmã dela, que ficou com o bebê até que passassem os efeitos da droga.” Mas a mãe foi ao Conselho Tutelar tentar pegar o filho juntamente com os traficantes, que estavam armados. “Eles tentaram invadir o Conselho. Nós ficamos abaixados para pensarem que não estávamos aqui. Achei que ia morrer, até que a polícia chegou e espantou eles”, recorda.

Prisão e sequestro

Para a conselheira Judite Silva, cada dia é uma lição. Sua experiência a ensinou a advertir os pais sobre os cuidados que devem ter com quem colocam dentro de casa para olhar os filhos. Certa vez, conta, uma senhora de mais de 50 anos foi ao fórum e, ao apresentar sua identidade, descobriu que tinha uma ordem de prisão contra ela emitida há dois anos. “Ela estava com um bebezinho de nove meses, do qual era babá, mas queriam prendê-la imediatamente”, lembra. “Por acaso, ela falou o nome da madeireira onde o pai da criança trabalhava e a polícia conseguiu localizar o pai e a mãe. Foi a maior surpresa para os pais.”

Judite também atuou em um caso que envolvia tentativa de sequestro. Durante um plantão noturno, ela foi chamada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) porque uma mulher havia sido presa com uma criança de  um ano. Ela dizia ser a mãe, mas era negra, e o bebê, branco de olhos verdes. “Todo mundo via que ela não era a mãe. Estava sob o efeito de drogas, agressiva; uma hora falava um nome, depois outro. Eu tive que ir lá para abrigar a criança. Demos um banho nela, comida para acalmá-la e, nesse intervalo, um policial passou um rádio dizendo que tinha uma mulher lá dizendo que a filha tinha sido sequestrada. Horas depois, a gente constatou que [a pessoa que reclamou] era a mãe mesmo”, conta. A sequestradora foi presa.

Dedicação

Para o secretário de Justiça e Cidadania, Gustavo Rocha, ser conselheiro tutelar é uma função que exige dedicação integral, atenção, cuidado e sensibilidade para tratar os casos que chegam – principalmente, destaca, aqueles em que as crianças estão sendo vítimas de violência.  “Muitas vezes é o conselheiro tutelar o primeiro a chegar ao local onde um menino ou menina está sofrendo algum abuso ou maus-tratos”, situa. “É esse profissional que tem que acolher essa criança e tomar as medidas necessárias para sua proteção.”

Por isso, ele ressalta quem está interessado em participar do processo de escolha não pode estar interessado apenas no cargo público. “É um trabalho difícil, que exige determinação e, muitas vezes, até paixão pelo que se faz”, reforça. “Também é preciso ser alguém de confiança da população, de modo que [a parte reclamante] se sinta à vontade para fazer denúncias. Precisa ainda conhecer a realidade do local onde vive e trabalha para conseguir identificar situações em que possa estar ocorrendo alguma violação de direitos.”

Thiago Félix, 20 anos. “O Conselho Tutelar apareceu na minha vida no momento que eu mais precisei “. Foto: Joel Rodrigues / Agência Brasília

Nem só de finais felizes vivem os conselheiros. Judite, certa vez, perdeu um adolescente para as drogas. O caso foi denunciado pela escola. O garoto, de 14 anos, estava agressivo. “Por acaso, no dia do meu atendimento, era aniversário dele. Conversamos muito, levei um bolinho, cantei parabéns. Fiz de tudo para ele largar as drogas, mas não deu tempo”, lembra. Um dia, o jovem acabou assassinado em um acerto de contas. “Foi doloroso ter que colocar uma cruzinha numa pasta minha, mas a vida não é feita só de vitórias”, lamenta.

Superação

Mas nem tudo é perda nessa história, como demonstra o caso de Thiago Félix, 20 anos. O jovem chegou ao Conselho Tutelar por meio do programa Jovem Candango. Em um ano e meio de estágio e contato diário com os conselheiros, ele aprendeu a usar o computador, fazer planilhas e recebeu outros ensinamentos que vai carregar para a vida, como educação, respeito ao próximo e noções de responsabilidade. “O Conselho Tutelar apareceu na minha vida no momento que eu mais precisei”, valoriza. “Dos 15 aos 18 anos, fiquei meio perdido. Dos sete caras que andavam comigo, só eu e outro terminamos o segundo grau e viramos homem. O resto se envolveu com drogas, está preso ou morto.”

Thiago atualmente é repositor em um supermercado. Ele deve o emprego à ajuda do Conselho Tutelar. “Acho que, sem eles, eu nem trabalharia. Assim que acabou meu estágio, me arrumaram a vaga lá”, conta. O salário que ele ganha no supermercado é o sustento da família, já que sua mãe está desempregada e as irmãs apenas estudam. “Faço o que posso para ajudar em casa. Eu fazia um curso técnico de auxiliar de enfermagem, mas ficou apertado para pagar e acabei trancando. Mas meu sonho é voltar a estudar”, planeja.

Parceria com a escola

A maior porta de entrada para o Conselho Tutelar é a escola. Normalmente são os professores os primeiros a perceber mudanças no comportamento dos alunos, que podem apresentar alterações de comportamento decorrentes de maus-tratos, abuso sexual ou envolvimento com drogas. “A escola é capaz de identificar os problemas quando eles começam a surgir”, garante Judite. “Eles chegam e falam: ‘está acontecendo alguma coisa, a criança está cada vez mais calada ou agitada, ou chorando, ou quieta demais’. Eu chamo os pais e procuro descobrir o que está acontecendo.”

Cabe ainda ao Conselho Tutelar acompanhar a frequência escolar dos estudantes. Em caso de 25% de faltas, a escola é obrigada a notificar o conselho que vai apurar o que está acontecendo. “A criança pode estar com algum problema em casa. Pode ser caso de abuso, maus-tratos, negligência, envolvimento com droga…”, enumera Judite.

Serviço
Como denunciar
Denúncias sobre violação de direitos das crianças e dos adolescentes podem ser feitas 24 horas por dia, inclusive finais de semana e feriados. Disque 100 para denunciar ou ligue para 3213-0657.
Veja abaixo alguns exemplos de situações diante das quais se deve procurar o Conselho Tutelar mais próximo.

  • Agressão física, verbal e psicológica
  • Negligência e/ou omissão por parte dos pais/responsáveis ou do Estado
  • Se a criança ou o adolescente estiver ameaçado de morte
  • Quando houver oferta irregular ou não fornecimento de algum serviço de atendimento à criança/adolescente
  • Em situações de violação de direitos, como exploração sexual, trabalho infantil, abandono, etc