28/06/2019 às 11:34, atualizado em 21/10/2019 às 14:56

Anderson Torres – “O número de feminicídios no DF mantém-se inalterado”

Com a experiência de 20 anos de polícia, o secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, joga luz sobre os crimes de gênero em Brasília, defende estudos acadêmicos para entender a violência contra as mulheres e desconstrói o alarde de que o número de casos tem aumentado

Por Hédio Ferreira Júnior, da Agência Brasília

Delegado da Polícia Federal e agora chefe da Segurança do GDF, Anderson Torres tem 20 anos de vivência na carreira / Fotos: Lúcio Bernardo Jr / Agência Brasília

 

Um holofote foi jogado sobre os crimes cometidos contra as mulheres em Brasília. Mortes provocadas por homens ciumentos, com perfis agressivos e que tratam as atuais ou ex-companheiras como posse não são uma novidade no país, mas passaram a ser escancaradas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Distrito Federal. O propósito é simples, em meio à complexidade do tema: entender a violência de gênero a que elas estão submetidas apenas pelo fato de serem mulheres.

À frente da Segurança do Governo do Distrito Federal (GDF) e com 20 anos de vivência na carreira, o delegado da Polícia Federal Anderson Torres defende o estímulo ao desenvolvimento de estudos acadêmicos para destrinchar os crimes de assassinato de mulheres – que assumem uma complexidade cada vez maior ao abrirem as portas e janelas de casas onde mulheres muitas vezes apanham caladas em um contexto de violência suportado pela cultura de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Esse é o mote de uma campanha da Secretaria de Segurança Pública que tenta estimular parentes, amigos e vizinhos a denunciarem casos de violência contra a mulher – que, por se manterem abafados, chegam a culminar em assassinatos. “Desde que assumimos aqui, nós jogamos luz em cima disso, por isso tem que falar tanto no DF e criou-se uma sensação de que esse tipo de violência está aumentando, mas não é que está aumentando”, assegura o secretário, que lidera as diversas ações atualmente adotadas pelo GDF para diminuir esse tipo de crime.

Além da campanha #MetaaColher, o GDF dá suporte jurídico, médico e psicológico a vítimas de violência doméstica no Centro de Referência Centro de Assistência Social (Cras), na galeria da estação do metrô da 102 Sul. Já a Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios da SSP-DF fez um estudo inédito desse tipo de crime no Distrito Federal, trabalho que deu suporte às polícias Civil e Militar na prevenção e combate à violência contra a mulher. Além disso, está em fase final de testes para implementação um dispositivo de emergência que será entregue a mulheres em medida protetiva cujos agressores estejam monitorados por tornozeleira eletrônica.

Em entrevista à Agência Brasília, Anderson Torres fala das ações da Secretaria de Segurança Pública na prevenção e combate ao assassinato de mulheres e em como espera mudar esse cenário do crime de gênero no Distrito Federal.

Levantamento do Atlas da Violência aponta um crescimento dos casos de violência contra mulheres no Brasil. São, em média, 13 mulheres assassinadas diariamente no país por serem mulheres. O que explica esse fenômeno negativo?

Anderson Torres: Eu acho que a gente tem que começar definindo o que é o feminicídio. Feminicídio não é uma simples morte de mulher. Uma mulher morreu vítima de um crime, isso é feminicídio? Não sei. Feminicídio é a morte de mulher pelo fato de ela ser mulher. É um crime de gênero, ela morreu por um sentimento de posse, de egoísmo, de ciúmes, ou seja, o gênero causou a morte dela. Uma mulher que teve a bolsa roubada na parada de ônibus e o cara deu um tiro nela não é feminicídio. É homicídio de uma mulher. Muitas vezes não é feita essa separação nas estatísticas e por isso coloca-se [na imprensa] que o número subiu muito. É uma visão errada da coisa.

Como o senhor avalia os números de feminicídios no DF?

Não há uma explosão do número de feminicídios no Distrito Federal. Muito pelo contrário, os números estão muito parecidos com os números do ano passado. Hoje acho que nós temos dois casos a mais apenas do que no ano passado, agora não menos preocupante do que o ano passado e em todos os anos. Isso muito nos preocupa. Eu acho que a imprensa tem vindo muito atrás disso porque nós jogamos luz em cima desse crime. A Secretaria de Segurança Pública fez um estudo de todos os casos de feminicídio ocorridos no Distrito Federal desde o advento da lei [do Feminicídio] de março de 2015 até o mês passado. Setenta e cinco casos foram estudados e com isso nós conseguimos enxergar e dar luz é esse crime. Eu me lembro bem quando mudou a lei do estupro, o tipo penal mudou. O tipo penal do estupro quando eu me formei, por exemplo, para ser considerado estupro era apenas o crime em que havia a penetração. Unicamente isso. Hoje mudou e tudo o que envolve assédio não consentido virou estupro. Então o número de estupros no Brasil deu um salto gigantesco. Mas aumentou o número de casos? Não necessariamente, simplesmente mudou o tipo penal, mudou a maneira de trazer isso para a estatística e o número foi maior. No Brasil num ano tiveram mil [casos]. No ano seguinte, 20 mil. Sim, porque tudo que o cara fizesse contra a vontade daquela pessoa passou a ser considerado estupro. No feminicídio é a mesma coisa. A partir do momento que nós separamos isso, tiramos o crime comum contra mulher e constatamos que ela morreu pelo fato de ser mulher, isso alterou a estatística bruscamente.

Como os números de casos são aferidos pela Secretaria de Segurança Pública?

No Distrito Federal, a Polícia Civil, sempre que encontra um cadáver feminino vítima de violência, o inquérito é instaurado como feminicídio. Ao longo do inquérito, se se concluir que não foi o feminicídio, que foi uma morte não em razão do gênero, mas em razão de um assalto ou de uma outra coisa, esse crime é reclassificado, é mudada essa tipificação penal e vai com homicídio 121 qualificado, não como feminicídio. Então eu vejo isso como um avanço muito grande do Distrito Federal. Outras unidades da federação têm nos procurado para entender um pouco melhor isso. Elas começam como homicídio e, ao longo da investigação, se entenderem que foi o feminicídio, eles tipificam. Aqui é o contrário. Realmente, a gente está priorizando o combate a esse crime contra as mulheres. É um crime horroroso, geralmente um crime muito passional, de uma violência muito grande, que choca a família, que geralmente deixa uma série de órgãos e que estado tem que se preocupar muito. E assim, desde que assumimos aqui nós jogamos luz em cima disso, por isso tem que falar tanto no DF e criou-se uma sensação de que esse tipo de violência está aumentando, mas não é que está aumentando.

E por que se decidiu fazer barulho sobre esse assunto?

Nós fizemos esse estardalhaço porque, com base no estudo que fizemos aqui, entendemos que se a família, se os vizinhos, se a população não ajudar o estado, nós não vamos diminuir o número de feminicídios.

Jogar luz sobre esses crimes, fazer com que a imprensa reporte o surgimento de novos casos, novos crimes contra as mulheres, ajuda ou atrapalha a conter o surgimento de novos casos no momento em que, se o criminoso quer aparecer, ele vai saber que ganhará notoriedade pelo seu feito?

Não há um estudo que diga exatamente se ajuda ou atrapalha. A gente acompanha há muitos anos a questão do suicídio e nele foram feitas várias pesquisas no mundo todo e se confirmou que realmente ficar divulgando suicídio aquilo, de certa forma, tem uma influência nas pessoas que têm uma tendência a cometer aquele tipo de crime. Na questão do feminicídio, nós não temos esse estudo. Acho uma coisa delicada, tanto que nós procuramos não ficar divulgando imagens de modus operandi, apesar de que isso vende muito, a imprensa insiste muito em divulgar isso. Tem uma matéria, por exemplo, de um pequeno vídeo do cara entrando na casa, ou algo nesse sentido, e a matéria estoura, diferente de outra que não tem. Eu também não concordo com divulgação de imagem, agora eu não tinha outra alternativa a não ser dizer que o crime existe, as pessoas entender isso. Precisam entender que a violência doméstica geralmente caminha para uma coisa mais grave – não necessariamente um feminicídio, mas uma agressão gravíssima, uma agressão de filhos, e precisa ajudar o estado a mulher. A mulher muitas vezes fica vítima desse dessa pessoa, às vezes depende dele financeiramente, outras só tem ele aqui em Brasília, família longe, não tem para quem correr, não tem para quem pedir socorro. Vizinhos, parentes, pessoas que tenham conhecimento dessas agressões precisam nos ajudar denunciando.

[Olho texto=”Chegar em casa e quebrar o celular da mulher com raiva é um tipo de violência. Ameaçar é um tipo de violência. Bater é outro tipo de violência” assinatura=” Anderson Torres, secretário de Segurança Pública” esquerda_direita_centro=”centro”]

Há uma campanha do GDF que estimula amigos, parentes e vizinhos a denunciar agressores antes da consumação do ato em si. Qual a orientação da polícia a quem deve “meter a colher” nessas brigas que se transformam em agressões, físicas, verbais e psicológicas?

É uma quebra de paradigma que nós estamos tentando fazer aqui, fomentando aqui pela secretaria. Desde que eu sou criança eu escuto isso que briga de marido e mulher ninguém mete a colher. As pessoas sempre falaram isso e hoje é de uma forma responsável, estudando esse crime a gente entendeu que não pode ser assim. A gente está indo contra um ditado de tantos anos no Brasil, mas as pessoas precisam realmente meter a colher. E eu te digo isso pelo seguinte: todos os casos quando a gente começa a ler o inquérito – porque os inquéritos são estudados, capa a capa, lidos, depoimentos – não tem um que não tenha um depoimento que não diga “tem três anos que ela apanha”, “todo mundo sabe, “a filha dela assiste direto”, “até o irmão sabe… Eu até agora não vi um caso que dizia que o cara nunca foi nada, “ele era super tranquilo, chegou aqui e matou mulher”. Só que é dentro de casa, onde o estado não tem como agir sem uma medida cautelar da justiça. Muitas vezes a gente não tem como chegar, então para prevenir esse tipo de crime, meta a colher. É uma forma de denunciar. As pessoas não gostam dessa palavra. É ruim, dá medo em quem vai falar. Por isso nós estamos tentando achar alternativas para as pessoas criarem coragens e tem funcionado. As pessoas têm procurado, isso encoraja a pessoa. Muitas vezes, quando eu começo a falar em alguma palestra, por exemplo, tem gente que chora. Eu tô falando e percebo a pessoa enxugando as lágrimas porque ela está vivendo aquilo, sabe que a vizinha tá passando por isso, a mãe, a tia, a irmã… Então perceba que é uma coisa que mexe com as pessoas.

O que deve ser compreendido como uma situação de violência, da mais simples à mais complexa?

A Lei Maria da Penha é uma lei extremamente abrangente. Ela traz ali todos os tipos de violência física, psicológica. Chegar em casa e quebrar o celular da mulher com raiva é um tipo de violência. Ameaçar é um tipo de violência. Bater é outro tipo de violência. Eu acho que ninguém tem que agredir ninguém, que as relações precisam ser respeitosas, mas a partir do momento que aquela pessoa se sente atingida de alguma forma ela precisa procurar uma ajuda.

Por menor que seja a agressão?

Por menor que seja. É claro que eu não estou aqui também incentivando a fim de casamentos e a desunião dos casais, mas cada um tem seu ponto de equilíbrio e sabe até aonde vai o respeito e precisa sair fora, pedir ajuda, porque o que a gente vê é que quando começa muitas vezes não tem fim. E os casos são corriqueiros e muitas vezes são iguais, mas seguem uma linha. Quando se vai entender os inquéritos , percebe-se: “poxa, se ela tivesse parado aqui, ela não teria morrido”, “se nesse dia aqui ela tivesse feito isso, também não teria acontecido”, “se nesse dia aqui essa pessoa que perdeu esse depoimento tivesse ido na delegacia, a gente teria livrado ela”, “se tivesse buscado ajuda no Cras [Centro de Referência de Assistência Social]”… Ao longo da história se vê que a vítima teve oportunidades [de interromper aquele processo de violência], mas não conseguiu. Outra vantagem que vejo nos levantamentos que fizemos dos casos é fomentar estudos acadêmicos sobre o feminicídio, como foram e são feitos em relação ao suicídio. Porque tem algumas perguntas a que a gente não conseguiu responder.

Quais, por exemplo?

Muitas vezes o cara se mata [depois de matar a mulher]. Eu não vejo alguém cometer um homicídio num bar, na rua, numa briga, e o cara se matar depois. É um fato ainda esquisito, porque eles vão no limite de loucura de o homem brigar, agredir e mata e logo depois, em vários casos, vem um arrependimento e se mata também. Há um caso recente aqui em que o cara assassinou a mulher, saiu de moto depois e ao ver um ônibus, ele jogou a moto em cima do ônibus. O ônibus estava longe e ele foi lá e se jogo na frente. Outro,s a forca já está ali ao lado; terminou, ele se enforca. Ou se dá um tiro. Então, veja, é uma coisa que mexe com os dois. Não é um crime comum. Esse nosso estudo precisa levar a estudos bem aprofundados nessa área para a gente poder entender um pouco mais.