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04/07/2019 às 12:16
Morto tragicamente durante a construção de Brasília, há 60 anos Bernardo Sayão entraria para a história da cidade. Pioneiro terá trajetória contada em dois livros
Foi há 60 anos. Quando nasceu o primeiro herói da construção de Brasília. E ele pagou caro por isso, morrendo cedo, aos 57 anos, de forma trágica, bem no meio da selva amazônica. E, por se tratar de Bernardo Sayão, foi uma morte épica. Esmagado por uma árvore gigantesca, há poucos dias dele e sua equipe de bravos homens concluírem a confluência das frentes de desbravamento norte e sul da rodovia Belém-Brasília, lá na fronteira entre o Pará e o Maranhão, no limite entre as regiões Norte e Nordeste. Parecia o fim do mundo, mas era o Brasil. O Brasil de Juscelino Kubitschek e aquele distante 15 de janeiro de 1959 entraria para a história da cidade, do país.
“Ele foi tratado como o primeiro grande ícone de Brasília, a história perfeita do herói trágico”, reflete o jornalista Sérgio de Sá, neto de Bernardo Sayão, que acaba de começar um livro sobre essa figura emblemática do surgimento da cidade. Se tudo der certo, o projeto será lançado no aniversário de 60 anos da capital, em abril de 2020. “É uma vontade que tenho há muito tempo, não é uma biografia, prefiro chamar de perfil biográfico, meio livro-reportagem e, claro, vai entrar a parte afetiva”, antecipa.
Para concluir a obra, além de muita pesquisa norteada por matérias jornalísticas e centenas de fotos, Sérgio de Sá já traçou no mapa brasileiro uma aventura pessoal. Vai percorrer a Belém-Brasília de cabo a rabo, refazendo os trechos que seu avô abriu até chegar à cidade maranhense de Açailândia, município próximo ao local do acidente que tirou a vida do pioneiro. Esse road movie sentimental carregará nas entrelinhas abordagem jornalística com pegada antropológica.
“É uma viagem em ‘busca do avô perdido’”, conta. “Vou subir até aonde tem o marco sinalizando onde ele morreu, mas vou como jornalista, atrás de histórias, descobrir que estrada é essa hoje, atualizar a Belém-Brasília, sempre linkando a imagem dele ao longo da rodovia, porque depois da construção da capital, talvez a Belém-Brasília seja a obra mais importante dessa aventura de JK”, observa.
E foi mesmo. Tão importante que ela, a estrada, sozinha, explica, na essência, o porquê do presidente Juscelino Kubitschek insistir em trazer a nova capital para o coração do Brasil. Para ligar os estados, promover a integração nacional, enfim, levar o desenvolvimento para todos os rincões desse país continental. Com pavimentação concluída no governo Médici (1969 – 1974), esses objetivos foram alcançados. Tudo graças ao esforço, determinação e coragem de um homem: Bernardo Sayão.
Com imagem bastante associada ao Brasil Central, muita gente até hoje acha que o gigante pioneiro era goiano. Nunca foi. Carioca do bairro Tijuca, remador do Botafogo de Futebol e Regatas, jogador de peteca dos bons no Posto 2 da praia de Copacabana, dono de uma rede de pesca no Posto 6, fincou raízes na terra de Bernardo Élis e Cora Coralina por opção. Chegou aqui nos anos 40, a pedido de outro presidente, Getúlio Vargas, com a missão, no embalo da “marcha para o Oeste”, de implantar em Ceres, Colônia Agrícola que, de certa forma, seria o embrião do surgimento da Belém-Brasília.
[Olho texto=”Abrir uma estrada que cortasse o país inteiro de norte a sul era um sonho juvenil de Bernardo Sayão, ele era muito grato a JK pelo comando desse projeto” assinatura=”Ronaldo Costa Couto, jornalista e historiador” esquerda_direita_centro=”esquerda”]
“Abrir uma estrada que cortasse o país inteiro de norte a sul era um sonho juvenil de Bernardo Sayão, ele era muito grato a JK pelo comando desse projeto”, comenta o jornalista e historiador Ronaldo Costa Couto, que está finalizando também um livro sobre esse grande desbravador brasileiro num projeto que consumiu quinze anos de pesquisa. “Eu tinha esse compromisso com o Bernardo Sayão, sempre me impressionei com sua figura, um personagem fascinante e surpreende da história de Brasília e do país”, destaca o escritor, que entrevistou mais de 100 pessoas.
Bernardo Sayão tinha tanto prestígio em Goiás e seus trabalhos foram tão bem-sucedidos na região que, em 1954, chegou a vice-governador do Estado. Na verdade, governou os goianos por alguns meses, mas, genuíno homem de ação, achava aquela rotina de paletó, gravata, carimbo e papéis um tédio. Se havia uma coisa que o deixava desnorteado, angustiado, era o dia a dia de um escritório e sua teia de burocracia. O que não impediu que, em 1956, assumisse uma das diretorias da Novacap – a Administrativa -, que naquela época ficava no Rio de Janeiro.
Mas por pouco tempo porque JK, ciente de seu dinamismo nas frentes de trabalho, na liderança de homens nos canteiros de obras, o queria em Brasília. Em outro livro que escreveu sobre a epopeia que foi a construção da nova capital, o clássico, “Brasília Kubistchek de Oliveira”, um best seller com mais de 80 mil edições vendidas, Ronaldo Costa Couto conta, com riqueza de detalhes, a chegada de Bernardo Sayão ao cerrado brasiliense.
“Que dia o senhor quer que eu esteja aqui?”, perguntou ele a presidente Juscelino que exagera: “Ontem”. No dia seguinte, às 6h da manhã, lá estava Sayão de mala e cuia e duas crianças a tiracolo estacionando em frente ao Catetinho, que começava a ser erguido. “Pronto, chefe, aqui estou para cumprir suas ordens”, se apresentou, montando barraca embaixo da primeira árvore à vista.
Paixão
Aqui estando, o pioneiro não decepcionou o presidente, os peões que o elegeram líder nato e carismático, enfim, a nação brasileira. Tinha paixão, obsessão por construir estradas. Quando chegou ao Planalto Central, os trechos que aqui haviam eram de terra, ponte só as de improvisos, um perigo! Asfaltou tudo porque achava que as coisas para Brasília como comida, materiais de construção, tinham que vir de perto e muito rápido. Trouxe muita gente de Ceres, Anápolis e Goiânia para a construção da cidade.
“Era o homem que implantava as coisas, fazia acontecer. Antes de Brasília, pouca gente sabe, mas ele já tinha deixado sua marca no interior do Rio de Janeiro, no Mato Grosso, no Paraná e foi essencial aqui como um dos primeiros a chegar, no convencimento dos candangos, porque ninguém queria vir para cá”, comenta Ronaldo Costa Couto. “Muito difícil de Brasília ter acontecido sem Sayão”, sentencia.
Os trabalhos de terraplanagem da rodovia Brasília-Goiânia começam com o gigante das estradas em 3 de novembro de 1956. Sob seu comando foram asfaltados ainda o trecho de 120 km entre Brasília-Anápolis e os 280 km que passam por Brasília-Cristalina-Paracatu. Também as saídas para São Paulo e Belo Horizonte, além de levantamento do traçado para rodovia do Nordeste rumo a Barreiras (BA).
Os feitos de Bernardo Sayão como desbravador arrojado, tocador de obras e construtor de estradas correu os quatro cantos do Brasil. Mais do que isso, alcançou o mundo. Na prestigiada revista Life, o americano John dos Passos destacou seu estilo enérgico. Nas páginas das Seleções do Reader’s Digest, a jornalista e compatriota Virginia Prewett salientou o porte físico de Hércules do pioneiro. A escritora Rachel de Queiroz era uma admiradora confessa e, anos mais tarde, em 1967, no romance “Quarup”, o escritor Antônio Callado criaria um personagem inspirado em Sayão.
“Ele era uma figura que exercia fascínio enorme sobre as pessoas, era como se fosse um imã, foi um dos principais desbravadores deste país, um pioneiro sem igual”, avalia Ronaldo Costa Couto.
Para Jk – que nutria por Bernardo Sayão uma amizade fraterna, apesar de se conhecerem há pouco tempo -, o temperamento ativo, diligente desse bandeirante moderno com ares de Tarzan de uma selva de pedra que emergia do nada, sintetizava o ritmo da construção de Brasília, andava na cadência acelerada das obras. Rosto queimado de sol, suor escorrendo pela pele morena, passos acelerados sempre em movimento, em constante atividade, o pioneiro era a síntese do Brasil grande. Em Brasília, naqueles anos seminais, o rastro do trator na terra vermelha do cerrado significava rastros de Bernardo Sayão.
“Reservava para si as tarefas mais árduas e perigosas e as executavas com seu inextinguível bom humor”, escreveu JK em suas memórias, “Por que construir Brasília”. “A beleza viril do físico privilegiado combinava com invejável formação moral. Era bom por natureza, bravo por instinto”, continuaria.
Mas até os bravos heróis também tombam e quando isso acontece, eis que surge de seus restos, enfim, da figura que se foi um dia, a sombra imponente de um mártir, o símbolo maior de uma causa, um propósito. E, Bernardo Sayão se tornou o grande mito da interiorização da capital do Brasil. Um mito eternizado pela morte trágica no meio da selva amazônica.
Reza a lenda que, no começo da Belém-Brasília, os homens estavam com medo de rasgar a estrada no meio da selva porque diziam que ali era o caminho das onças, que os índios iam atacar todo mundo. Desbravador de coragem inabalável, Bernardo Sayão conquistou a confiança dos trabalhadores, impingindo o sentido de dever acima de tudo. No dia em que o estrondo no meio da selva silenciou os trabalhos na região, causando sua morte fatal, cerca de três mil homens estavam embreados mata adentro na missão de concluir a estrada.
Era uma massa fiel de operários que choraram em peso, claro, a perda do líder que ali agora se encontrava agonizando diante de parte deles com o crânio quebrado, fraturas expostas nas pernas e braços, sangue esvaindo aos cântaros. Sayão morreu com a cabeça no colo de um amigo, a bordo de um helicóptero, no leito da tão sonhada estrada prestes a ser finalizada. No dia seguinte ao acidente, dia 16, a notícia da morte do herói pegou todos de surpresa, se espalhou como rastilho país afora, comovendo toda uma nação. Diante da notícia, o presidente Juscelino se desespera, reza, chora.
Quando o corpo chegou à cidade, a comoção era geral. O velório, na capela Dom Bosco, e a missa de corpo presente, no Santuário Nossa Senhora de Fátima, ali na 705/905, levou uma multidão de curiosos que queria prestar última homenagem ao pioneiro guerreiro. Como a família não permitiu que se abrisse o caixão, muitos duvidaram que Bernardo Sayão, de fato, havia morrido. Alguns chegaram a dizer que ele havia sido raptado pelos selvagens de uma tribo localizada às margens da Belém-Brasília.
“Minha avó não permitiu que o caixão fosse aberto porque temia a dilaceração do corpo. Queria para si a imagem da virilidade”, conta, anos depois, o neto Sérgio de Sá. “Mas ele morreu mesmo, um tio meu teve que fazer o reconhecimento da vala em que ele foi enterrado por conta de uma enchente no cemitério e constatou lá os restos dele”, garante.
Por uma dessas ironias que só o destino é capaz de pregar, Bernardo Sayão foi a primeira pessoa a ser enterrada no cemitério de Brasília, mais tarde batizado de Campo da Esperança. O mesmo que, menos de dois anos antes, ele havia riscado os seus limites. À beira do túmulo, bastante comovido, JK discursa ciente de que dá adeus não só a um líder carismático querido pelos peões, mas à personificação de um Brasil marcado pela força, aventura e bravura, simbolizada, naquele momento, pela construção de Brasília.
“Quando Bernardo Sayão morreu, Brasília era um super canteiro de obra, mas naquele dia a cidade parou para chorar o grande ídolo dos candangos, que ficou órfã dessa grande figura”, destaca Ronaldo Costa Couto.
Em 31 de janeiro de 1959, dezesseis dias após a morte de Sayão, as frentes norte e sul finalmente se encontram, dando fim aos 2.240 quilômetros da Belém-Brasília. Uma aventura marcada por perigos e tragédia que, passados 60 anos, ainda habita o inconsciente de milhares de brasileiros. Hoje chamada, merecidamente de Rodovia Bernardo-Sayão, a pista concretizou o sonho de JK de ligar os extremos do país.
“Bernardo Sayão foi uma figura maior da história brasileira, era uma força da natureza que tinha grande paixão pelo Brasil”, finaliza Ronaldo Costa Couto.