29/11/2019 às 10:42, atualizado em 29/11/2019 às 17:17

Conversa animada com o bom e velho Vladimir Carvalho

Figura emblemática do cinema brasileiro e do DF, documentarista de 84 anos encerra a 52ª edição do Festival de Brasília, neste sábado (30), celebrando cinco décadas de convivência com a cidade

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília

No final dos anos 60, Vladimir Carvalho comia o pão que o diabo amassou, no Rio de Janeiro. Então com dois curtas-metragens nas costas – Romeiros (1962) e A Bolandeira (1967) –, ele sobrevivia com os vales de repórter do Diário de Notícias, morando numa casa de cômodo, no bairro de Santa Teresa, com a mulher. Foi quando recebeu o convite para dar aula na Universidade de Brasília (UnB). “Vim, olhei para Brasília e achei a cidade fria, fria, no sentido metafórico”, lembra. “Voltei para o Rio, as contas todas atrasadas, então propus ficar só dois meses. Acabei me casando com a cidade. Já faz exatos 50 anos!”, ri, surpreso.

Um dos nomes mais importantes do cinema brasileiro e figura essencial para a cinematografia brasiliense, o documentarista de 84 anos encerra neste sábado (30), às 19h, a 52ª edição do Festival de Brasília, apresentando seu mais recente projeto, Giocondo Dias – Ilustre Clandestino. Antes, nesta sexta-feira (29), às 19h, lança no hall do Cine Brasília, o DVD de Cícero Dias, o Compadre de Picasso. “Giocondo é um filme em tom menor, sobre um homem que marcou minha infância a partir dos relatos do meu pai. Um sujeito que tinha o dom do diálogo, tema atual”, reflete.

Dono de memória prodigiosa e lucidez invejável, a trajetória desse paraibano de voz de profeta e simpatia sem fim, se confunde com a parte da história do cinema nacional e os primeiros anos da capital, quando ainda se ouvia, por aqui, o baticum das obras. Chamado pelo cineasta baiano, Glauber Rocha, de o “Vertov da caatinga” – documentarista experimental russo do início do século passado –, Vladimir foi um dos pioneiros da sua arte na Paraíba, flertou com a turma do Cinema Novo e sentiu o peso dos anos de chumbo da ditadura nos ombros, quando seu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi limado do Festival, em 1971. O episódio acarretaria na interdição do evento por três longos anos. “Comecei esse projeto em 1966, ali procuro recompor as relações de classe na relação entre os donos de terras e os camponeses”, lembra.

Em conversa com a Agência Brasília, numa manhã tranquila, ele falou de sua relação com a cidade e o mais importante e tradicional festival de cinema do país; dos tempos de UnB; de quando foi assistente do documentarista Eduardo Coutinho; de sua relação com o cineasta Arnaldo Jabor; e do dia em que viu o diretor de cinema polonês Roman Polanski, na beira da piscina do Copacabana Palace Hotel, pedindo para ver os ensaios da escola de samba Mangueira e um jogo de futebol do Flamengo. “Também vi o (cineasta alemão) Fritz Lang de perto e o ator Glenn Ford (o astro do filme Gilda, de 1946), passeando de óculos ray ban”, recorda.

Giocondo Dias

Ouvi falar de Giocondo Dias pela primeira vez, mencionado pelo meu pai, que era militante do partido comunista. Isso nos anos 40. Eu nasci em 1935. Era, de certa forma, uma maneira de descobrir o meu pai como uma pessoa que estava ligado no mundo, embora morasse numa cidade do interior (Itabaiana, Paraíba). Então, em 1935, o Giocondo, cabo do exército, fez parte da Intentona Comunista (tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas por militares, com apoio do Partido Comunista Brasileiro). Um movimento que estourou meio desconectado, no Rio de Janeiro, e, depois, em Recife e São Paulo. O Giocondo tinha prestígio junto aos seus comandados, já com ideias revolucionárias. Ele foi a um quartel, em Natal, no Rio Grande de Norte, e prendeu o comandante do lugar em nome do Luís Carlos Prestes (líder comunista). Uma bravata! (ri). Nessa confusão, foi ferido a tiros. Milagrosamente, fizeram a cirurgia e ele sobreviveu. Ele andou em comícios onde foi atingido novamente. Levado para o hospital, foi novamente operado. A partir dessa experiência de vida, e isso é uma interpretação minha do que vem depois, ele se tornou um ferrenho defensor de posições que eliminavam qualquer coisa no partido que fosse realizado pelas armas. Daí o slogan do filme – “Adeus às armas, apelo ao diálogo”. É um tema muito atual. O Giocondo construiu isso na clandestinidade.

O dom do diálogo

Giocondo foi um cara importante. Não era um intelectual. Era um militante que tinha o dom do diálogo, que pregava, dentro do Partido comunista, a revolução não pelas armas, mas a partir de uma boa conversa. Foi um personagem que encarnou essa posição. Ele tinha uma frase: “Vamos discutir essa discordância”. Ia conversando de pouquinho e pouquinho, diminuindo a discordância. Redescobri ele e meio que me apaixonei pela sua figura.

O filme

Eu tenho essa posição, talvez um tanto idealista, de não fazer nada de encomenda. Então, assumi a produção desse filme e fiquei dois anos ralando. É um perfil em segunda-mão porque é visto pelos raros contemporâneos do Giocondo Dias. 

Encontro com o personagem

Eu tive a oportunidade de vê-lo porque também militei no partido, quase que por causa do meu pai. Ele ficou uma pequena temporada em Brasília, em 1983 e 1984, onde foi de gabinete em gabinete tratar da legalidade do partido. Era algo praticamente previsto porque a gente estava em plena redemocratização, a volta do Estado de Direito. E o conheci de vista. Apertamos as mãos, já sabia da importância dele. Essa referência e atuação dele sempre me nortearam. Segui muito essa orientação, de trilhar pela democracia. Primar pelas vias democráticas.

Arqueólogo do cinema

É uma circunstância minha. Eu sempre cheguei depois dos acontecimentos. Saí da Paraíba e fui para Salvador, atraído pelo Cinema Novo. O Glauber Rocha estava surgindo no cenário, o Roberto Pires – que viveu um tempo aqui em Brasília –, também. Quando chego lá o movimento foi amainando, com as principais cabeças indo embora. Depois o (Eduardo) Coutinho (documentarista) me chamou para ser assistente dele em Cabra Marcado para Morrer (1964) e veio o Golpe. Vou para o Rio, e o que acontece? O Cinema Novo estava se desmilinguindo porque a ditadura estava instalada, acabando aquela geração que fez o movimento acontecer. Daí, venho para Brasília, em 1969, convidado a dar aula na UnB. O curso de cinema acabara havia cinco anos. Estou sempre atrás dessa memória. E isso é uma dificuldade muito grande porque o Brasil não preserva a memória audiovisual. Para fazer qualquer filme que precise recorrer a momentos históricos você vai aos arquivos e não encontra muita coisa.

Polanski na piscina do Copacabana Palace

Depois de ser assistente do (Eduardo) Coutinho, fui trabalhar com o (Arnaldo) Jabor na cobertura do Festival Internacional do Filme (FIF), que teve apenas duas edições e que resultou num filme dele chamado Rio, Capital do Cinema. Um mês depois, ele faria o curta Opinião Pública (1967). Era um festival para promover o Rio e os artistas convidados ganhavam vales para beber uísque nas boates. Vi o Fritz Lang (diretor alemão de Metrópoles, filme de 1927) daqui pra ali; o ator canadense Glenn Ford (do filme Gilda, de 1946),  passeando de óculos ray ban; e o Roman Polanski (diretor polonês de O Bebê de Rosemary, filme de 1968) na beira da piscina do Copacabana Palace, pedindo para ver os ensaios da Mangueira e um jogo de futebol do Flamengo.

Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

É a base de tudo, conta com a sombra das pessoas que fundaram o curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB). O festival instalou a I Semana do Cinema Brasileiro, firmando um compromisso cultural com o que era realizado no Brasil no cinema na época e apoiando o que sobrou do Cinema Novo. Tratavam-se de uma série de filmes que pareciam ecoar aquilo que ficou para trás como uma herança de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. E que está aí até hoje, com uma plateia superexigente, crítica, politizada, que vive na capital da República. O Festival de Brasília é a nossa matriz, campo das reivindicações, do desenvolvimento, da projeção do Cinema Brasileiro de um modo geral.

O País de São Saruê e a Censura

É um filme que comecei a fazer em 1966 e que procura recompor um cenário que, de certa forma, ainda existe, que são as relações de classe. O campesinato em torno de terra, isso vinculado desde a descoberta do Brasil. Quem é dono de terra é dono de terra, não quer abrir mão e trava uma brigar campal com as ligas camponesas. Ele havia sido selecionado para o Festival e estava na censura. Dois dias antes de sua exibição foi arrancado do evento e substituído por Brasil Bom de Bola (dirigido por Carlos Niemeyer). Bom, fazia um ano do AI-5, as pessoas vaiaram perigosamente, houve quebra-pau fora no cinema, com as pessoas atirando bolinha de gude nas autoridades e tudo o mais. Deu que o Festival de Brasília seria interditado por três anos.

O País de São Saruê é uma das obras mais importantes de Vladimir Carvalho, um filme ícone do festival

Relação com as novas gerações de cineastas

Brasília tem um lado documental que me pegou e também os alunos com quem tive contato quando criei uma disciplina própria no curso de cinema da UnB . Parece que isso repercutiu no espírito da turma que tinha facilidade de filmar.

Conterrâneos Velhos de Guerra

É difícil escolher qual de minhas criações eu gosto mais porque a gente é meio pai de todos. Agora eu acho que Conterrâneos… é uma súmula do meu trabalho. Ele faz um sumário, uma ampliação ou continuação de O País de São Saruê (1971). Primeiro, eu filmei o nordestino no seu habitat natural. Depois, filmei os nordestinos fora, como se fosse um bando de judeus que tivessem migrado e que foram aqui rejeitados por uma coisa da sociedade brasileira, de luta de classes. Esse filme tem esse condão, essa capacidade de juntar tudo o que já fiz, os costumes, a cultura, tudo um filme só. Não à toa chamei de Conterrâneos Velhos de Guerra.

UnB

A gente deve muito a pessoas que, em circunstâncias históricas, criaram o primeiro curso regular de cinema do Brasil. Isso aconteceu em Brasília. Graças ao Darcy Ribeiro, ao Pompeu de Souza, ao Nelson Pereira dos Santos e ao Paulo Emílio Salles Gomes, o homem mais importante para pensar o cinema brasileiro. É uma marca muito forte. Esse curso e a própria Universidade eram uma revolução no ensino superior brasileiro, que é de uma importância enorme. Deu um caráter de proficiência e profissionalidade em termo de criação de um festival de cinema que reflete até hoje. O público de Brasília é um público muito especial, crítico, independente. É uma herança. Uma herança que vem desses caras.