02/01/2020 às 09:52, atualizado em 27/02/2020 às 16:21

A banca da árvore, um ponto luminoso na história de Brasília

Um dos jornaleiros mais antigos da cidade, Lourivaldo Marques, 81 anos, segue incansável na profissão há quase seis décadas

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília

Lourivaldo Marques, dono da primeira banca de jornal de Brasília, na 108 Sul |  Fotos: Lúcio Bernardo Jr / Agência Brasília

Assim que montou sua banca de revistas e jornais nas proximidades da quadra modelo, 308 Sul, em fevereiro de 1960, bem próximo à Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, a rotina de Lourivaldo Marques passou a ser  uma só.

Todos os dias, depois do almoço, pegava sua lambreta modelo DL e ia buscar as publicações no Aeroporto de Brasília. O material chegava do Rio de Janeiro, num avião DC3, lá pelas 15h, quase 16h. Naquele final de 1961, quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Gallotti, um cliente fiel, por sinal, lhe perguntou se seu exemplar de O Globo já tinha chegado, a resposta foi curta e direta: não.

“Eu já tinha trocado minha lambreta por um Candango 2 (DKW-Vemag), e naquele dia, perdi a chave do carro. Quinze minutos depois, ele me liga de volta avisando que haviam achado uma chave e que a notícia saiu na televisão”, lembra o jornaleiro. “Brasília tinha tão pouco assunto e tão pouca gente que uma coisa pequena como essa virou notícia”, ri.

Hoje com 81 anos, seu Lourivaldo, como é conhecido na quadra, tem muitas histórias para contar e orgulho de ser um dos primeiros donos de bancas do Plano Piloto.

A banca da 108 Sul e as árvores plantadas por Seu Lourivaldo: um caso de amor

O pioneiro, nascido em Irecê, Bahia, chegou no coração do Brasil motivado por um sonho e, antes de vender notícia, comercializava laranja e pequenos brindes pelas ruas quase desertas da cidade. Entre eles, uma flama com os dizeres:  “Eu fui a Brasília e não me esqueci de você”.

“Essa flama marcou muito, a frase é linda”, conta. “Sonhei com Brasília, igual Dom Bosco sonhou. No meu sonho eu via aqueles gigantes virando terra, não sabia o que era. Porque eu nunca tinha visto um trator”, detalha.

A primeira banca, de madeira, ficava exatamente onde hoje fica a Galeteria Gaúcha, da 108 Sul. Lourivaldo conseguiu o estabelecimento depois de uma proposta inusitada feita ao então chefe da redação do jornal O Globo. “Cheguei para o seu Rubens e disse: ‘Já sei trabalhar, escolhi um ponto e preciso de um sócio’. Ele então apertou minha mão e disse: ‘muito prazer, sócio’”, recorda. “Aonde passa um fio com energia ou rede de esgoto por aqui eu sei, porque vi a cidade sendo erguida”, orgulha-se.

As árvores do desejo

“Portal é energia/Passe aqui todos os dias/Faça três pedidos com alegria/E realize sua magia” |

Selada a sociedade, agora era tocar o negócio fincado em novo endereço, desde o final de 1961, 108 Sul, bem do lado do Bloco A. Amante da poesia desde a adolescência e da natureza dos tempos de guri no interior baiano, o dono da banca teve a ideia de plantar, em 63, duas árvores próximas à banca, agora com estrutura metálica. A relação de amizade entre os três perdura até hoje, passados 56 anos.

“Beijo minhas árvores todos os dias”, conta Lourivaldo Marques

“Plantei pensando que estava longe da banca, daí aumentei o espaço aqui e elas ficaram mais perto ainda”, diverte-se, explicando a proximidade dos dois gigantes figos italianos tratados como filhos. Rola até beijinho diário. “Passei o verão molhando elas, daí quando veio as águas, elas se firmaram. Quando começaram a crescer, as protegi. Tem um lugar que batizei com o rosto dela e vou lá beijar. Elas tomam conta da minha banca”, conta o guardião das plantas.

Reza a lenda, que a passagem formada entre os dois ramificados e robustos troncos das gigantes árvores, cravados na entrada da 108 Sul, tem poderes mágicos. Nada de teletransportagem para mundos sobrenaturais, cheio de elfos, fadas, rainhas, reis e castelos. A mensagem é mais simples e filosófica, que seu Lourival resume em versos tocantes. “Portal é energia/Passe aqui todos os dias/Faça três pedidos com alegria/E realize sua magia”, sintetiza.

Ponto de cultura

Clientes de outras quadras visitam a banca de Seu Lourival para prestigiar o fundador

 

O carinho que a comunidade da quadra 108 Sul tem por seu Lourivaldo e sua banca é imenso. Aliás, o prestígio do jornaleiro, que trabalha de segunda a segunda, das 7h30 às 20h, ultrapassa as fronteiras do setor, atendendo fregueses de outras partes da cidade.

Sempre foi assim, desde os primórdios do negócio, quando a clientela fazia fila e pegava senha para comprar jornal. “No começo eu quase não tinha concorrência e tinha poucas quadras por aqui, atendia o DF inteiro”, admite. “Tem uma banca há poucos metros do nosso bloco, na 309 Sul, mas fazemos questão de vir aqui, Seu Lourivaldo é conhecido de todo mundo”, confessa o casal de aposentado Cláudio e Jadna Mattos.

Aliás, foi por conta de uma dessas palavras codificadas, que um dia, no auge da censura militar, nos anos 60, o Serviço Nacional de Inteligência (SNI), cismou com um dos compradores de sua banca, o de número MR8.

O departamento de informação achava que era uma alusão ao grupo guerrilheiro de nome homônimo, naquela altura do campeonato, em atuação na Guerrilha do Araguaia. O nome do grupo, Movimento Revolucionário 8 de Outubro, era uma homenagem ao líder revolucionário argentino, Ernesto “Che” Guevara, morto naquela data.

“Naquela época eu já pensava de forma moderna, nível de informática”, fala, sem nenhuma modéstia. “De repente, os militares começaram a me olhar torto. Imagina, eu? ”, brinca.

Muito do charme do espaço se deve aos eventos culturais realizado ali para promover a venda de jornal e unir a comunidade. Por isso, o nome, “Banca da Cultura”. O primeiro encontro do gênero aconteceria em 1965, com ajuda de um estudante local.

A ideia era simples, mas eficiente. Bastava comprar um livro e levar um jornal. Deu certo. De lá para cá, promoções do gênero não pararam mais. De vinho, a locação de filmes, de tudo um pouco foi tentado para alavancar os negócios e estreitar os laços com a clientela. E aparecia cada freguês…

Seu Lourival sempre incentivou atividades culturais na banca

“Um dia quem veio aqui foi o presidente Figueiredo (o último do regime militar), também já vieram Tancredo Neves e até Marco Maciel”. Vieram porque, de certa forma, eu fazia gincanas e eles tinham que trazer as crianças para brincar”, revela.

“Estamos aqui há muitos anos. O Lourivaldo é parte da nossa história, a importância cultural dele aqui para a Asa Sul é imensa”, agradece o músico Marcelo Linhos.

Vizinha do empresário, na 308 Sul, a jornalista Conceição Freitas resume assim a atuação do colega de trabalho: “Ele nasceu para o que é, como naquele documentário das irmãs cegas A Pessoa é Para o que Nasce [2005]. Ele é o empreendedor, muito antes de o empreendedorismo virar uma tática perversa do neoliberalismo. Comerciante antigo, com todo o talento para o ofício. Incansável, está sempre olhando adiante, tentando perceber para onde o mundo vai. Admirável”.