27/02/2020 às 11:32, atualizado em 28/02/2020 às 12:19

Feira da Torre, um mosaico de cada cantinho do Brasil

Espaço aberto sob o mirante central da cidade traduz a identidade de Brasília ao abrigar a rica mistura das culturas do país

Por Gizella Rodrigues, da Agência Brasília

A feira é o local procurado por todos que precisam adquirir algum produto e não sabem ao certo onde encontrar. Nos fins de semana, passam por lá de 10 mil a 15 mil pessoas | Foto: Renato Alves

Ponto turístico imperdível para quem visita Brasília, ela também tem um lugar guardado no coração dos brasilienses, seja os que cruzam o Distrito Federal para comer o acarajé na barraca da Mainha, seja quem vai degustar o tacacá na Delícias do Pará. Ou, ainda, quem quer, simplesmente, comprar um móvel ou um objeto de decoração para a casa.

O nome oficial é Feira de Artesanato da Torre de TV, mas, por décadas, foi chamada de Feirinha Hippie. Hoje, ela é conhecida como Feirinha da Torre. Em 50 anos de história, também mudou de lugar. Saiu dos pés da Torre, onde os feirantes montavam barraquinhas com lona azul, para os boxes fixos pintados de verde construídos em uma área mais abaixo do monumento projetado por Lucio Costa.

Independentemente do nome ou da localização, é para lá que todo mundo corre quando precisa comprar alguma coisa e não sabe onde encontrar. São 600 boxes, 480 ocupados, onde se vende de tudo, redes, almofadas, esculturas em madeira e pedra sabão, souvenirs de Brasília, camisetas, flores secas do Cerrado, artesanato em prata, couro, quadros, estofados e móveis de madeira.

Os artigos vendidos ali devem ter uma característica em comum: serem produzidos artesanalmente.  “A Feira da Torre de TV traduz a identidade de Brasília, que é essa mistura de todas as culturas do país”, afirma Hebert Amorim, presidente da Federação das Associações de Artesãos do DF e Entorno (Faarte/DF) que tem uma banca que vende redes, almofadas e cortinas feitas à mão no local há 26 anos.

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Hebert Amorim, presidente da Federação das Associações de Artesãos do DF e Entorno: “Foi o JK que trouxe o primeiro artista plástico para expor e vender seus quadros aqui” | Foto: Renato Alves / Agência Brasília

História de Brasília

Não há registros oficiais sobre a data de inauguração da feira. O que se sabe é que sua história se confunde com a da Torre de TV, inaugurada em 1967. Os artesãos contam que a torre ainda estava em construção e artistas já começavam a expor seus produtos no local.

Foto: Divulgação / Arquivo Público do DF

A ocupação foi inclusive incentivada por Juscelino Kubitschek que teria visitado Paris e ficado encantado com a venda de artesanato parisiense embaixo da Torre Eiffel. “Foi o JK que trouxe o primeiro artista plástico para expor e vender seus quadros aqui”, conta Hebert.

O artesão Manuel Messias, 73 anos, chegou a Brasília em 1957 com os pais quando tinha 10 anos. O pai, farmacêutico, veio para o Planalto Central em 1956 e, um ano depois, foi buscar a família em São Paulo. Na nova capital, ele aprendeu o ofício de sapateiro e vendia seu trabalho em uma calçada na 103 Sul entre 1965 e 1968. Em 1969, foi morar com o concunhado no acampamento da construtora Rabello, no Setor Hoteleiro Sul.

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Manuel Messias: “Antes mesmo da torre ser inaugurada, já tinha três artesãos expondo seus produtos aqui” | Foto: Renato Alves / Agência Brasília

A Torre de TV tinha apenas dois anos de idade e Manuel conta que ele decidiu montar uma barraca na feira que começava a surgir. “Antes mesmo da torre ser inaugurada, já tinha três artesãos expondo seus produtos aqui”, conta o ex-sapateiro que aprendeu novas técnicas para trabalhar o couro e hoje faz bolsas, carteiras e porta-moedas. Tudo em couro legítimo. “Nunca vi boi sintético”, brinca. “Eu faço minha ferramenta, minha tinta e crio todos os meus produtos. Você pode rodar essa feira toda que não acha nada copiado de outras barracas”, diz.

Manuel teve três filhos, e a primogênita Débora Garcia, 49 anos, aprendeu a trabalhar com couro com o pai. Aos oito anos já fazia sandálias rasteirinhas e bolsas infantis. Ela trabalhava com o pai até tirar a carteirinha de artesã e conquistar seu próprio box na feira da Torre de TV aos 13 anos.

“Eu observava muito. Aprendi a fazer a trança redonda no couro vendo meu pai ensinar um funcionário dele. Também aprendi a costurar na máquina industrial com ele e, principalmente, ele me ensinou os segredos para moldar bem as peças”, conta a artesã que mantém uma banca na Feira da Torre de TV há 36 anos, faz um artesanato mais moderno que o do pai e, diferentemente dele, trabalha com couro sintético. “Acho que 5% das minhas peças são com couro sintético. Uso esse material por causa dos veganos que não consomem couro”, explica.

Acarajé da Mainha

Um dos boxes que mais faz sucesso na praça de alimentação da Feira de Artesanato da Torre de TV, onde é possível encontrar pratos da cozinha regional do país inteiro, é o da Mainha, especializado em culinária baiana, como acarajé, vatapá e outras delícias. A “Baiana do Acarajé”, Mariana de Oliveira, foi uma das pioneiras da feira, teve uma barraca no local por 45 anos até 2011, quando faleceu aos 74 anos.

“Primeiro ela vendia quentinha para os trabalhadores da construção da Torre de TV, depois colocou seu tacho e começou a fazer acarajé”, conta Cleuza Pinheiro, a única filha biológica de Mainha que assumiu o negócio desde sua morte, a pedido da mãe. “Não cozinho tão bem quanto ela, mas estou tentando”, diz.

Cleuza Pinheiro, filha de Mainha, a primeira baiana do acarajé da Feira da Torre: “Não cozinho tão bem quanto ela, mas estou tentando” | Foto: Renato Alves / Agência Brasília

Foto: Arquivo pessoal

Cleuza conta que a mãe ficava embaixo de chuva e de sol na barraca, de onde tirou o sustento para criá-la, juntamente com os seis filhos adotivos. Todos eles bateram à porta da baiana em busca de ajuda e foram acolhidos, alimentados, instruídos e adotados como filhos. “Ela chamava o Torre de ‘mãe torre’, dizia que daqui tirou o dinheiro para sustentar eu e meus irmãos”, diz.  “Quando chovia lembro que todo mundo corria e ela colocava um saco na cabeça”, relata.

O restaurante fica lotado aos finais de semana. Os clientes fazem fila e esperam 30, 40 minutos pelo prato. E sem reclamar, garante Cleuza. “Foi um legado que minha mãe me deixou. Eu falei que não dava conta de cozinhar para tanta gente e mamãe disse que os fregueses me ajudariam”, recorda-se. Segundo ela, o estabelecimento já tem cinco gerações de frequentadores.

Como o casal Kátia de Paula, 45 anos, e Wellington dos Reis, 48 anos. Eles frequentam a barraca há 31 anos, desde quando eram namorados. Saíam de ônibus de Sobradinho, onde moram, para comer o acarajé de Mainha. “Lembro a primeira vez que eu vim. Ela me perguntou se eu queria quente ou frio. Eu pedi quente (acarajé é quente, não é?) e veio tão apimentado que mal consegui comer”, conta Wellington. “Da segunda vez eu contei e ela morreu de rir. Falei que queria gelado”, completa.

Hoje eles não precisam mais pegar ônibus, pois têm carro. Mas ainda batem ponto na feira da torre uma vez por mês. O casal tem quatro filhos, de 27, 22, 18 e 15 anos, que foram apresentados à culinária baiana desde pequenos e também se tornaram clientes assíduos. Os dois mais velhos também levam as namoradas. “Fomos para a Bahia e ficamos até frustrados. Não achamos nenhum acarajé tão gostoso”, diz Kátia.

Mudança de lugar

Mainha faleceu no mesmo ano em que os feirantes saíram das barracas montadas nos pés da Torre de TV para a estrutura fixa construída em uma área mais abaixo do monumento. No começo, os artesãos reclamaram da mudança e os frequentadores demoraram a se acostumar com a nova localização. “Muitos acharam que a feira tinha acabado. Vinham na torre e não desciam aqui”, explica Hebert Amorim, presidente da Faarte/DF.

Foto: Divulgação / Arquivo Público do DF

Hoje, entre 10 mil e 15 mil pessoas visitam a feira aos fins de semana. Há escadas rolante para facilitar o trânsito entre o monumento e as barracas para os turistas e brasilienses. As escadas, porém, estão desligadas há mais de quatro anos, desde quando começou a reforma do ponto turístico.

O GDF está reforçando a estrutura do monumento, que nunca tinha passado por manutenções significativas desde a inauguração, e as obras estão  90% concluídas.  Após a recuperação, o local passará a ser gerido pelo Banco de Brasília (BRB).

Com a revitalização do local, os feirantes pretendem mudar o horário de funcionamento do local. Atualmente, a feira fica aberta todos os dias das 8h às 18h, sendo que segunda-feira é uma espécie de ponto facultativo e a grande maioria dos boxes não abre. Nos outros dias, cerca de 30% da feira funciona, mas os boxes ficam abertos mesmo aos fins de semana.

Os feirantes querem que, em dias de semana, os boxes abram à tarde e fiquem abertos até a noite, para ser uma opção de lazer para o turista que vem a Brasília para participar de eventos, por exemplo.

Lazer

A Feira de Artesanato da Torre de TV também é lugar de diversão. Uma roda de capoeira acontece no local a cada 15 dias, sempre aos domingos de manhã. No segundo sábado de cada mês, das 9h às 12h, acontece o “Café com Samba”, uma roda de samba acompanhada de café da manhã.

No terceiro sábado do mês, 90 artesãs se reúnem para a oficina do projeto Polvo de Amor, que confecciona e doa pequenos polvos de crochê para crianças recém-nascidas prematuras. A iniciativa, inspirada em uma ação social que ocorre na Dinamarca desde 2013, produz calma e proteção ao recém-nascidos no momento de ausência do contato humano.

As artesãs do projeto Polvo de Amor confeccionam pequenos polvos de crochê e os doam a crianças recém-nascidas prematuras | Foto: Renato Alves / Agência Brasília

O corpinho do polvo acalma bebês nas incubadoras. Os tentáculos dão macios e ideais para serem agarrados, o que evita que os bebês puxem fios e sondas. Os pequenos se sentem abraçados pelos bichinhos. O projeto existe desde 2017 e, desde então, já distribuiu 5 mil polvos em UTIs neonatais de hospitais públicos e particulares.