05/03/2020 às 10:00, atualizado em 05/03/2020 às 10:04

Francisco Ozanan, o jardineiro de Brasília

Funcionário do Departamento de Parques e Jardins, da Novacap, ele dedicou 40 anos de sua vida a embelezar a capital. Brincalhão e grande contador de causos, Ozanan morreu em 2016, aos 72 anos

Por Gizella Rodrigues, da Agência Brasília

Ozanan foi o responsável pelas árvores e flores que enfeitam Brasília e ajudou a tornar realidade o sonho de Lucio Costa, que queria que “os prédios residenciais nascessem como da clareira de uma floresta” |  Foto: Divulgação/Novacap

Quem desembarca no Aeroporto Internacional de Brasília Juscelino Kubitschek dá logo de cara com um dos cartões-postais da cidade: um balão de trânsito com um paisagismo cuidadosamente elaborado. O visitante recebe boas-vindas admirando o jardim formado por 20 mil flores de diferentes espécies e cores e árvores sempre verdes, mesmo em agosto, o auge da seca brasiliense. Mas nem sempre foi assim. Antes, arbustos e árvores com espinhos dominavam a paisagem, que era sem graça e sem vida.

A ideia de colocar cores no meio do verde foi do engenheiro agrônomo Francisco Ozanan Correia Coelho de Alencar, conhecido como o “jardineiro de Brasília”, morto em 2016, aos 72 anos. Funcionário do Departamento de Parques e Jardins (DPJ) da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), ele dedicou 40 anos de sua vida a embelezar a capital. Foi o grande responsável pelas árvores e flores que enfeitam Brasília o ano todo e ajudou a tornar realidade o sonho de Lucio Costa, que queria que “os prédios residenciais nascessem como da clareira de uma floresta”.

[Olho texto=”Sou muito suspeito para falar, mas eu acho que a paisagem de Brasília é absolutamente singular. Em Brasília você vai ver ipê banco, amarelo, roxo, quaresmeira, copaíba,  jequitibá do cerrado, landim, pombeiro, você vai ver coisas que não existe  nas outras cidades, uma coisa absolutamente só de Brasília.” assinatura=”Francisco Ozanan Correia Coelho de Alencar” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Filho de agricultores nordestinos, o cearense chegou a Brasília em 1969. Tinha acabado de se formar e aceitou o convite de um professor de faculdade, Melquíades, que era muito duro e temido pelos alunos, mas passou a gostar de Ozanan depois de seu rendimento em um trabalho escolar. “No começo do semestre, ele nos mandou escolher um animal selvagem para falar sobre a biologia dele”, contou, em entrevista ao Programa de História Oral, do Arquivo Público do DF. “Eu escolhi falar sobre o rato de cana e ganhei nota 10. Ele disse que eu tinha sido muito original”, lembrou.

A amizade com o professor mudou completamente a vida de Ozanan, como ele mesmo disse. Logo que se formou, o agrônomo iria permanecer na Universidade Federal do Ceará trabalhando com Melquíades, mas o regime militar decretou o AI-5, que endureceu as regras, e o recém-formado aceitou a sugestão do mestre de vir para a capital recém-inaugurada. “Ele me chamou e disse: ‘Olha, suas chances de emprego aqui no Ceará são praticamente zero, fechou tudo, não se pode contratar. Você quer ir pra Brasília? Eu sou amigo do Stênio de Araújo Barros, que é o chefe do Departamento de Parques e Jardins da Novacap, e ele me falou que queria uma pessoa recém-formada’”, relatou Ozanan, durante entrevista concedida em 2004.

Barraco de tábua

Depois de relutar no início – “o que vou fazer em Brasília?”,  questionou –, Francisco Ozanan acabou aceitando a “aventura”. Conseguiu o dinheiro da passagem de avião emprestado com o irmão e embarcou para a capital. “Peguei um Avro da Varig, que é um aviãozinho turboélice [também conhecido como turbopropulsor]. Quando fui chegando a Brasília, o piloto falou: ‘Senhores passageiros, estamos descendo no Aeroporto Internacional de Brasília’, eu olhei aquele barraco de tábua e falei: ‘meu Deus do céu, tá brabo’. Aí, eu peguei um táxi no aeroporto e, chegando ao Eixão, perguntei: ‘como é o nome dessa rua?’. O taxista respondeu: ‘não, aqui não tem rua e tal.’ Falei: ‘aqui tá esquisito’”.

Quando chegou à Novacap, em julho de 1969, Ozanan começou a trabalhar no viveiro, cuidando de doenças das plantas e controle de pragas. Um mês depois ele se envolveu na construção da Praça do Buriti. “Aquela praça foi construída em 17 dias” contou, e acabou desempenhando outros trabalhos na companhia.

Naquela época, não havia em Brasília viveiro que produzisse mudas e, por causa da pressa para construir a cidade, a Novacap plantou em todo o Plano Piloto árvores exóticas, espécies que não são da flora brasileira, ou são de biomas que não se adaptaram ao Cerrado. “Isso era o convencional das outras cidades, mas não funcionou em Brasília. A planta que se dá bem lá na Mata Atlântica não se dá bem aqui no Cerrado”, explicou o agrônomo.

Morte de árvores adultas

Entre 1975 e 1976, morreram cerca de 50 mil árvores adultas em Brasília, o que desencadeou uma enorme crise. “Teve repercussão política contra a cidade, cogitaram voltar a capital para o Rio de Janeiro, porque isso aqui era um deserto, nem árvore ia pra frente”, disse Ozanan. “As árvores morreram porque o solo do Cerrado é um solo muito pobre, não tinha um suporte alimentar para elas, nem Brasília tinha as condições climáticas que fossem favoráveis e suficientes para um desenvolvimento completo e perene dessas árvores. Não eram plantas para o clima daqui”, explicou.

Ele e sua equipe arregaçaram as mangas: fizeram excursões ao Cerrado, coletaram sementes e testaram a natureza até descobrir o que poderia brotar no Planalto Central que fosse forte o suficiente para resistir à seca e ao sol. Deu certo: a cidade floresceu. Graças aos ensinamentos de Ozanan, a Novacap, hoje, só planta mudas nativas, inclusive os ipês, que enchem Brasília de cores. Só no Plano Piloto, há 1,5 milhão de árvores plantadas que proporcionam beleza única à capital. Em todo o DF, são mais de 120 espécies plantadas.

Grande chefe

Em 1980, o engenheiro agrônomo virou chefe do DPJ, onde trabalhou até a aposentadoria, em 2009. A Novacap chegou a convocar uma coletiva de imprensa para anunciar a despedida de Ozanan, que deixou o serviço público aos 66 anos. Engana-se, porém, quem pensa que ele ficou longe do verde e do trabalho.

“Quando ele começava a contar um causo podia esquecer. Ia longe”, diz. “Era uma pessoa muito boa”, conta Raimundo Gomes, chefe da Divisão de Áreas Verdes da Novacap | Foto: Divulgação/Novacap

Abriu, com dois colegas da Novacap, uma empresa especializada no plantio de gramas. “Não me aposentei com a intenção de trabalhar. Eu disse: ‘Vou ficar em casa e aproveitar o resto da minha vida.’ O primeiro e o segundo mês, achei bom demais. No terceiro, começou a me dar um tédio louco e eu já estava aprendendo a fazer bolo com a Ana Maria Braga”, contou, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, em outubro de 2015.

Ozanan era assim, brincalhão e grande contador de causos. Adorava boas histórias, ria alto, soltava palavrões vez ou outra. Mesmo depois de tanto tempo em Brasília, nunca perdeu o sotaque nordestino. Quem lembra é o chefe da Divisão de Implementação de Áreas Verdes da Novacap, Raimundo Gomes Cordeiro, 60 anos, que trabalhou mais de três décadas com Ozanan, até ele se aposentar. “Quando ele começava a contar um causo, podia esquecer. Ia longe”, diz. “Era uma pessoa muito boa”.

Primeiro a chegar e o último a ir embora, Francisco Ozanan era dedicado e cobrava resultados dos subordinados no DPJ, que chegaram a somar duas mil pessoas. Isso lhe deu fama de nervoso entre os que não conviviam com ele. “Algumas pessoas falavam que ele era bravo. Eu não achava. Ele era firme, mas era extremamente justo e nunca era arrogante”, conta Cordeiro, que chegou à Novacap na década de 1980. “E ele tinha uma capacidade incrível de motivar a equipe. Envolvia todo mundo no projeto, foi o melhor chefe que já tive”, elogia.

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Balões floridos

Em 1991, Ozanan agiu como super-herói da natureza. Um homem atacou o buriti solitário que dá nome à Praça do Buriti, no Eixo Monumental, em um protesto político. O indivíduo quase derrubou o buriti com um machado, mas foi preso pela polícia. Ozanan coordenou a operação de salvamento da árvore, que é tombada pelo Patrimônio Histórico. Colocou estacas de contenção, cobriu o buraco no tronco com uma resina grossa e criou uma proteção de ferro para deixar a árvore de pé. O buriti sobreviveu e continua no mesmo lugar até hoje.

Em 1991, Ozanan iniciou o projeto de paisagismo dos balões de trânsito. O primeiro foi o Balão do Aeroporto | Foto: Divulgação/Novacap

No mesmo ano, o agrônomo deu início a um novo projeto que trouxe ainda mais beleza para a capital: o paisagismo dos balões de trânsito. O primeiro deles foi o Balão do Aeroporto, onde diferentes espécies de flores são plantadas a cada época do ano. Cada uma delas tem uma cor diferente.

Agora, por exemplo, todas ostentam tons de amarelo. Semanalmente, a Novacap faz manutenção no local e, na época de seca, um sistema de irrigação garante que o jardim seja aguado.

Hoje, são 600 balões floridos em todo o DF. Ozanan tinha os seus preferidos. Além do Balão do Aeroporto, ele gostava da disposição das plantas no balão da 201 Sul, em frente à Polícia Federal.

“Os balões coloriram a cidade. Ele sempre dizia que o paisagismo era o último a ser feito em uma obra, igual a pintura”, lembra Cordeiro.