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12/03/2020 às 10:46, atualizado em 12/03/2020 às 19:58
A Escola dos Meninos e Meninas do Parque, que funciona dentro do Parque da Cidade, tem 202 alunos de oito a 45 anos, e todos moram nas ruas
Ao ser tornar a capital do Brasil, em 1960, Brasília virou “a galinha dos ovos de ouro” do país, atraindo todo tipo de gente. Primeiro vieram os políticos, depois foram chegando os empresários, os funcionários públicos e até diplomatas. A maioria desembarcava na terra sonhada de JK já com certas garantias de um futuro melhor. Mas, à cidade, que está a caminho de completar 60 anos, chegaram também pessoas – e não foram poucas – que lançaram a sorte ao universo e aterrissaram no “quadradinho das oportunidades” sem qualquer salvaguarda.
Foi o caso de alguns artistas de circo que, nas décadas de 1980 e 1990, se multiplicaram no Distrito Federal. Diante de número tão expressivo, foi preciso arranjar um lugar que oferecesse o mínimo de condições para esses nômades que faziam das ruas da cidade o local de trabalho. Então, não por acaso, foi criado o Gran Circo Lar, uma espécie de centro de atendimento especial para artistas transeuntes. Lá se concentravam as secretarias de Trabalho, Serviço Social e Educação. Muitos desses trabalhadores informais tinham talento de sobra, mas faltava traquejo até para contar o próprio dinheiro que ganhavam na labuta.
Foi o primeiro passo para dar melhorias à profissão informal que exerciam. Então, em 18 de abril de 1995, por força do Movimento Nacional Meninas e Meninos de Rua, foi fundada a primeira escola voltada exclusivamente para aperfeiçoar artistas de rua. Passou a ser chamada de Escola dos Meninos e Meninas do Parque. Levou esse nome porque funciona dentro do Parque da Cidade, no Estacionamento nº 6.
“Os movimentos sociais passaram a se preocupar com essas pessoas”, explica a pedagoga Amélia Cristina Araripe, que trabalha na escola desde março de 2002. “Elas eram inteligentes, mas necessitavam de uma educação formal. Porém, essa educação não podia ser convencional; tinha de se adaptar à vocação do aluno. Então, trabalhamos com o currículo da Secretaria de Educação. A diferença é que adaptamos as aulas à história e ao perfil de cada um.”
Amélia, natural do Rio de Janeiro, chegou a cursar ciências sociais, embora seu pai quisesse vê-la formada em direito ou contabilidade. Uma palestra do educador Paulo Freire, porém, foi determinante para ela se apaixonar pela área da educação. “Ele [Paulo Freire] me tocou muito. Mudei o curso para pedagogia”, conta. “Na época, falei para o meu pai que seria uma contadora, mas de histórias. Eu sou uma apaixonada pela educação”.
Para ela, a diferença entre a Escola dos Meninos e Meninas do Parque e as instituições convencionais é que estas são muito “amarradas” à grade escolar – na avaliação da diretora, não sabem compreender a aptidão dos alunos. “Recebo alunos de escola convencional, que abandonaram os estudos porque não aguentavam mais, mas aqui eles ficam, porque a gente valoriza o aprendizado que eles dão conta”, ensina Amélia.
Quando o aluno procura a escola, ele passa por avaliações para saber em qual grau de estudo e em qual turma será encaixado. Durante essa triagem, chamada Turma de Integração, o estudante enfrenta atividades de sondagem do conhecimento para que seja feito um esboço do que que já aprendeu e, assim, possa ser encaminhado a mais uma etapa. Feito isso, é a hora de decidir o nível escolar.
A escola possui três categorias. A primeira e a segunda etapas correspondem à fase de alfabetização. A terceira e quarta abrangem os alunos já alfabetizados. Já o período compreendido entre a quinta e a oitava etapa equivale ao quinto e oitavo ano do ensino fundamental. São etapas da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Ao ser aceito, o aluno recebe um kit banho – toalha, sabonete, escova, creme dental –, além de uniforme. Na grade curricular há aulas de matemática, português, ciências e higiene pessoal. A escola possui atualmente 202 alunos de oito a 45 anos. “A gente recebe a pessoa. Alguns chegam sem documento. Outros, afastados do ensino. Há alunos esquizofrênico, com dificuldade de aprendizagem e até superdotados”, conta Amélia.
Eles são distribuídos em 14 salas de aula e mais uma de informática. As turmas são matutinas e vespertinas, e todos são alimentados. Ganham café da manhã, almoço e lanche da tarde. As refeições são reforçadas com doações da iniciativa privada, por intermédio do Programa Mesa Restaurante, do Ministério da Cidadania. Além disso, os alunos recebem tratamento odontológico de uma universidade privada da cidade, por meio do Projeto UDF é Pop.
Por opção, Hélio Pereira Magalhães mora na rua. Natural de Montalvania (MG), ele chegou com nove anos a Brasília. Veio acompanhar a avó numa consulta no Hospital Regional de Taguatinga (HRT) e nunca mais voltou para casa.
Morou com uma tia até os 16 anos. Depois, casou, passou a trabalhar como engraxate e alugou uma casa em Samambaia. Em 1993, conta, sofreu uma desilusão amorosa: “Ela me traiu com meu vizinho. Hoje está casada com ele. Fui morar na rua. Sem emprego, não pude nem ver mais meu filho”.
Hélio está no oitavo ano e, atualmente com 43 anos de idade, tem o sonho de dar a volta por cima. “Quero fazer faculdade de administração, quero mostrar para todo mundo que eu posso”. Para ele, a sua família são as professoras.
A história de Natália Nascimento de Oliveira, 24 anos, é parecida. Ela também saiu de casa por um problema conjugal. Em 2002, veio de Goiânia (GO) com a mãe, que queria tentar a sorte na capital. Mas ela não aguentava mais conviver com o padrasto e, aos 13 anos, resolveu morar com o namorado.
Aos 15, se separou, relata, porque ele era dependente químico. Mesmo com o coração partido, deixou aos cuidados da avó a filha que teve com o companheiro e foi viver nas ruas. Depois de muito andar por aí, descobriu a escola e voltou a estudar. Está na sétima série. “Aqui dá oportunidade para quem mora na rua”, observa.
O ensino desenvolvido na Escola dos Meninos e Meninas do Parque é conhecido mundialmente. Em 2005, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) doou uma Kombi para buscar os estudantes na rua. “Eles marcavam o lugar onde queriam ser apanhados e a gente ia lá pegá-los”, conta Amélia.
Esse transporte não existe mais. O veículo foi vendido depois que uma árvore caiu em cima do capô. Com o dinheiro, foram feitas benfeitorias na própria escola. “Tivemos de vender e investir na Amigos e Amigas da Escola dos Meninos e Meninas do Parque (Amame), que é a entidade que nos ajuda”, disse a diretora.
Meire Romão Reis, 61 anos, foi abandonada em São Paulo com apenas três dias de vida. Em 13 de dezembro de 1982, veio para Brasília trabalhar em casa de família como doméstica. Casou e teve filho com o caseiro da mesma residência.
Em 1994, o marido foi embora e a deixou com o filho de quatro dias. A dona da propriedade pediu a criança, mas disse que não podia ficar com Meire. Então, ela pediu demissão.
Trabalhou numa empresa e casou de novo. Morou com o novo companheiro por 13 anos, mas se separou porque ele era violento. Fugiu de sua casa, no Recanto das Emas, e foi para a rua. Em 2013, tinha cursado apenas até a quarta série quando descobriu a escola. Estudou até o oitavo ano e fez supletivo. Hoje, estuda espanhol e quer aprender francês.
Por opção, Meire é educadora social na escola, uma forma que encontrou para “retribuir” o que recebeu. Só não conseguiu ainda ter uma casa. Dorme todas as noites nas cadeiras de espera de atendimento do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). “Penso em fazer faculdade de veterinária”, diz. “Melhor mexer com bicho que com gente”. Mesmo com a vida difícil, não tem e nunca teve vícios. “Nem todo mundo que está na rua mexe com isso”, analisa.