15/05/2020 às 10:22, atualizado em 15/05/2020 às 10:59

Zélio Maia: ‘O Detran não pode ser visto apenas como órgão de penalização’

Entrevistado da semana da Agência Brasília, novo diretor-geral do Detran-DF fala sobre importância da campanha Maio Amarelo, ressalta conceitos sociais da corporação e lembra que a educação no trânsito começa cedo, com as crianças

 

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília | Edição: Chico Neto

Criada há 23 anos, a Lei nº 9.503, que institui aos motoristas a obrigatoriedade de parar na faixa de pedestres – e a esses, a de só atravessarem as vias pela faixa –, é um exemplo clássico de sucesso duradouro de mensagem de conscientização. Em tempos de Maio Amarelo, o atual gestor do Detran-DF, Zélio Maia da Rocha, promete uma série de novas campanhas.  “O Detran não pode ser visto apenas como órgão de penalização”, destaca. Porém, atenta: “Não se alcança uma plena conscientização, sem penalização”.

Procurador do Distrito Federal desde 1999, o advogado defende que o foco maior da instituição não é o carro, mas o cidadão. Educação no trânsito, lembra ele, começa cedo. “Todo mundo, quando fala em Detran, só pensa – e isso é um vício – no carro”, destaca. “Não é. Pelo menos o Detran que penso é um Detran que pensa no pedestre. A responsabilidade do Detran é grande, começa com as crianças”.

Em entrevista à Agência Brasília, o gestor fala sobre a campanha Maio Amarelo e também aborda comportamento e educação no trânsito, fiscalização do uso das máscaras e a importância do trabalho social do Detran, sobretudo em dias de coronavírus. “As entidades públicas têm a responsabilidade social muito maior do que o particular em geral”, enfatiza. Acompanhe, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília

 

Como nasceu o Maio Amarelo?

Desde 2011, a OMS [Organização Mundial de Saúde] descobriu que acidentes de trânsito e óbitos de acidentes de trânsito viraram uma questão de saúde pública, lançando, assim, a ideia de dedicar um período do ano – no caso, maio – à conscientização da sociedade quanto a esse tema. Nos últimos dez anos, o Brasil, só com internações, teve 1,6 milhão decorrentes de acidentes de trânsito. Imagine a quantidade de pessoas que ficaram paralíticas ou com seus movimentos limitados, e o impacto disso no mercado de trabalho e na própria economia. O cálculo que se faz é que tivemos um prejuízo, nesses dez anos, só com internações relacionadas aos acidentes de trânsito, em torno de R$ 3 bilhões. Em 2011, a OMS alertou o mundo inteiro para tomar providências e traçar uma meta de redução de 50% de óbitos decorrentes de trânsito. Nós, o Detran-DF, entramos nesse projeto de 2013 para 2014. É a sétima edição do Maio Amarelo, que tem por objetivo aqueles propósitos da OMS: esclarecer a sociedade, de um modo geral, para tomar cuidado com relação ao trânsito. A ideia da campanha deste ano, com o lema “Perceba o risco. Proteja a vida”, é que você tem que ter uma percepção de risco para proteger a vida. A partir do momento em que temos essa noção, vamos ter mais cuidado. Consequentemente, se reduz a quantidade de acidentes.

E estamos fazendo o dever de casa?

Nós estamos com números relativamente bons, reduzindo em 27% o número de óbitos decorrentes de acidentes. Se pegarmos os sete anos em que estamos na campanha e [o fato de] que nesses sete anos tivemos a redução de 27,7% [no número de acidentes], então tivemos uma evolução interessante, levando em conta que tivemos um aumento da frota. É um número a ser comemorado. No ano passado, morreram 168 pessoas em acidentes de trânsito; no ano retrasado, foram 167 vidas [perdidas] em acidentes de trânsito. Pedestres e motociclistas são os mais atingidos. É um número preocupante, por isso não podemos nunca nos acomodar.

[Olho texto=”“O Detran que eu penso e imagino é o que pensa no pedestre. Estamos aqui para administrar o cidadão”” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Como o Detran tem atuado para conscientizar as pessoas sobre a necessidade de combater a violência no trânsito?

Quem está de fora, obviamente, não tem noção da estrutura do Detran. Eu fui uma dessas pessoas, e me surpreendi, dada a importância do órgão. Nós atendemos três milhões de clientes que são todos, sem exceção, moradores do DF – desde a criança, passando pelo adolescente, idoso, cadeirante, o pedestre que circula pela rua, o esportista que está correndo, aquele que anda de bicicleta, o cidadão que vai de motocicleta para o trabalho, caminhões, ônibus. Nesses dois meses à frente da instituição, tenho a clara noção de que o Detran não deve ser visto como um órgão de administração de carro. Isso é um vício. O Detran que eu penso e imagino é o que pensa no pedestre. Estamos aqui para administrar o cidadão. País desenvolvido é aquele que privilegia o seu cidadão que anda a pé ou de bicicleta na rua. Temos que nos conscientizar, aprender a raciocinar que o Departamento de Trânsito do DF deve ser visto como uma entidade, instituição, órgão que administra a vida de três milhões de pessoas, e são três milhões de pessoas que circulam não apenas de carro.

Há novidades da diretoria de educação do Detran-DF nesta edição do Maio Amarelo?

Não tenho dúvida de que a diretoria de educação é a mais importante do órgão, e vamos investir muito nela. Por quê? Para educar o cidadão – do cidadão pedestre, que às vezes não tem a devida informação ou educação no sentido de conscientização, de que ele tem que esperar o veículo passar, ingressando na faixa de pedestre de forma correta, passando pelo ciclista aos veículos tradicionais e carros pesados. Tenho como meta aqui no Detran fazer uma grande campanha, porque o Detran não pode ser visto apenas como órgão de penalização. A penalização, em algum momento, é necessária. Não se alcança uma plena conscientização sem penalização. Em qualquer país desenvolvido em que você olha e vê que o trânsito é voltado para o pedestre, há pesadas multas para quem desrespeita as regras destinadas aos veículos. E, se possível, [deve-se] multar também o pedestre, mas a forma mais fácil de controlar esse sistema de punição é [administrar os cidadãos] que transitam em veículos, porque têm placas, todo o controle do Estado.

Então haverá novas campanhas de conscientização?

Temos um projeto de fazer campanhas publicitárias voltadas a uma conscientização em massa, voltadas para toda a sociedade. A responsabilidade do Detran é muito grande. Começa com as crianças, então temos que ter campanhas voltadas para esse público. Não há exemplo melhor do que uma criança bem-educada e informada pedir que o pai coloque o cinto de segurança; ou que, nessa época de pandemia, alerte os pais para o uso da máscara. A criança é a faixa de idade mais fácil de você educar. Quando você educa bem uma criança, essa educação vai durar para o resto da vida.

[Olho texto=”“É cultural, em Brasília, estacionar em fila dupla nas quadras comerciais, então vamos começar a mudar essa cultura, tendo noção de que um veículo parado no lugar errado vai atrapalhar outros veículos”” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”direita”]

Os números de violência no trânsito poderiam ser reduzidos se atitudes simples, como não dirigir bêbado e não usar o celular ao volante, fossem obedecidas. Há alguma dificuldade de as pessoas seguirem essas regras? É uma questão cultural ou de comportamento?

O comportamento humano, normalmente, é atribuído ao fator cultural. Na Alemanha, não é cultural você desrespeitar as regras de trânsito, porque o Estado presente fez a sua parte de cobrar do cidadão, e ele [o cidadão, fez o papel de] respeitar as regras. Dizer que é cultural é tirar a responsabilidade de cada um. Não dirigir e beber, ou [não] falar ao telefone dirigindo, isso diz respeito ao Estado – no caso aqui, o Detran. Então é investir em campanhas de conscientização, educação. Por exemplo, é cultural, em Brasília, estacionar em fila dupla nas quadras comerciais, então vamos começar a mudar essa cultura, tendo noção de que um veículo parado no lugar errado vai atrapalhar outros veículos. Então vamos começar a mostrar que cada um tem responsabilidade social com o que acontece no trânsito. A cultura positiva ou negativa vem de uma atenção maior ou menor do Estado. A partir do momento em que [o Estado] se faz presente positivamente, educando e até penalizando com as multas quando é o caso, daí você cria uma cultura positiva.

O Detran vai ajudar na fiscalização ou na conscientização no uso das máscaras?

Outro dia saiu uma fake news falando que quem não estiver usando máscara no carro será multado pelo Detran. Não é verdade, isso não existe. Usar máscara é uma obrigação, mas [não usar] não é uma infração de trânsito. A ideia do governador no seu decreto é multar o cidadão que não estiver usando máscara, mas isso não impede que trabalhemos o conceito de conscientização para o uso de máscara, o que vamos fazer. Tanto que já há uma determinação para o planejamento de campanha pela conscientização do uso da máscara dentro da ideia de que temos de ajudar nossos três milhões de habitantes nesse momento tão crítico.

[Olho texto=”“O Detran não tem como evitar que os carros existam, mas tem a responsabilidade de, com os carros existindo e os cidadãos compartilhando espaços com veículos, tomar providências para educar da melhor forma possível”” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Nesta edição, o Detran vai ajudar também no combate à pandemia. A ideia é preservar e salvar vidas no trânsito para não faltarem leitos destinados aos pacientes da Covid-19?

Esse é um argumento a mais nosso. Ou seja, qual a forma de ajudarmos, hoje, no combate à Covid-19? Temos ao nosso favor dados para pensar. Por exemplo: a poluição diminuiu. Acidente de trânsito diminuiu, por motivos óbvios. E será que é esse o modelo que nós queremos ou é o modelo de excesso de carros nas ruas? Claro que isso é uma discussão social, de modernidade de trânsito, de mudança de concepção, de como se locomover nas grandes cidades, temas que fogem do controle do Detran. O Detran não tem como evitar que os carros existam, mas tem a responsabilidade de, com os carros existindo e os cidadãos compartilhando espaços com veículos, tomar providências para educar da melhor forma possível. E, mesmo que discorde do excesso de veículos nas ruas, que busque a melhor forma de compatibilizar a convivência entre pedestres, ciclistas e condutores de veículos. Descobrimos em análises técnicas que, com a pandemia, a quantidade de acidentes de trânsito diminuiu substancialmente. Logo, os hospitais passaram a receber menos pacientes de acidentes de carro, o que nos alertou a pensar que, quanto menos gente nos hospitais ocupando leitos, obviamente, estaremos disponibilizando leitos de forma direta para pandemia.

Neste ano, por conta da pandemia, as ações vão acontecer somente nas redes sociais e não nas ruas, como era característica da campanha. Como administrar essa mudança radical?

O Maio Amarelo é uma campanha essencialmente presencial, exige o corpo a corpo, com os agentes entregando panfletos para as crianças, para o pedestre na faixa, observando se ele está tomando as providências devidas, esclarecendo suas dúvidas; com o ciclista, da mesma forma. Isso não vai acontecer esse ano por conta da pandemia. Então lançamos, seguindo as orientações do Departamento Nacional de Trânsito [Denatran], o Maio Amarelo virtual. Claro que todos nós, não só o Detran, como a sociedade, estamos aprendendo a conviver com essa nova forma de comunicação. Certamente a sociedade, após a pandemia, será outra até na forma de conviver, de se comunicar, de trabalhar. É um desafio, mas o resultado está sendo proveitoso porque percebemos que, com boas campanhas nas redes sociais, talvez até alcancemos um público maior do que no [âmbito] presencial.

Há outras ações sociais desenvolvidas pela instituição durante essa crise?

Nós percebemos – e não só apenas o brasiliense, mas o brasileiro de um modo geral – que as diversas pessoas em situação de rua que vivem do trânsito, seja o flanelinha, o artista de rua que fica ali no semáforo fazendo suas apresentações, o vendedor ambulante que está vendendo sua pipoca ou água mineral, enfim, todas essas pessoas foram diretamente impactadas pela pandemia. Pensando nisso, sempre na contextualização de que as entidades públicas têm a responsabilidade social muito maior do que o particular em geral, temos o projeto Detran Solidário. O que é o Detran Solidário? Nós fazemos o recolhimento de cestas básicas doadas por servidores e pelos cidadãos em geral por meio de cinco postos de coleta em cidades como Plano Piloto, Águas Claras, Ceilândia; e, numa parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social [Sedes], entregamos a pessoas em situação vulnerável. Foi uma ideia que surgiu dentro da diretoria de educação do Detran, encampada pela direção-geral, e estamos nas ruas todos os dias fazendo coleta de cestas básicas ou do que a pessoa quiser ou puder doar. Qualquer contribuição será bem-vinda. Após isso, o que for arrecadado será passado para a Secretaria de Desenvolvimento Social, que fará a distribuição.

O senhor assumiu a direção do Detran no início de março. Como tem sido esse desafio?

O desafio é se entregar, sabendo que temos condições de mudar não apenas a realidade do Detran, mas de todo o Distrito Federal. Há uma cultura no Brasil de que a gente sempre dá um jeitinho, e comigo não tem jeitinho. Ou se faz a coisa certa ou não se faz. Quando se relativiza uma coisa pequena, acontece o mesmo com uma coisa grande. E isso é o pior exemplo que você pode dar aos seus pares, aos seus filhos, aos seus amigos, aos profissionais que estão do seu lado. Meu lema é: não relativize, porque quando faz isso para você ou para alguém próximo, você estará relativizado algo que vai prejudicar a coletividade. O desafio é grande, mas estamos cientes de que temos algo a fazer, oferecer aos três milhões de habitantes do DF.

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