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21/12/2020 às 19:00, atualizado em 21/12/2020 às 20:32
Produzido com ajuda da antiga Fundação Cultural do DF (atual Secec), “Amor e Desamor” marcou a estreia de Gerson Tavares na direção de longa de ficção
O ano era 1959. No meio do Cerrado, no coração selvagem do Planalto Central, em uma Brasília ainda tomada por obras faraônicas e ainda prestes a ser inaugurada, surge a lente curiosa de um jovem cineasta. O desbravador filma, incessantemente, o matracar de máquinas e homens trabalhando.
Seria um dos vários registros feitos sobre a nova capital que se erguia. A diferença é que não se trata de um trabalho encomendado, como muitos outros, mas de uma empreitada pessoal do novato Gerson Tavares. O cineasta acabara de retornar da Europa, cheio de ideias na cabeça e uma câmera na mão.
“Estávamos lá filmando e, de repente, aparece um carro trazendo o Israel Pinheiro [então presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital – Novacap] e o Juscelino [Kubitschek, ex-presidente da República]”, lembrou Gerson Tavares em entrevista, anos depois do episódio, referindo-se aos bastidores do curta-documentário “Brasília, Capital do Século”. “Corri, peguei no braço dele, expliquei sobre o documentário e perguntei se podia filmá-lo por três minutos. Ele disse que sim, se fosse rápido, porque o sol estava de amargar”, acrescentou o agora ex-diretor, que hoje tem 94 anos e mora em Cabo Frio (RJ).
Confira:
Ousado, o projeto teria um feito singular: o pioneirismo de captar, no calor do momento, impressões, angústias e anseios, sentimentos de personagens vivendo em um espaço vasto. Um tanto quanto vazia e intimidadora, a cidade então nascia de um projeto de nação nos seus primórdios, mas que também carregava uma forte aura futurística – uma atmosfera quase que de ficção científica, muito impulsionada pela moderna arquitetura de Oscar Niemeyer. Detalhes que foram realçados na película, de maneira pungente, pela fotografia de Hélio Silva e música especial de Rogério Duprat.
“A fotografia do Hélio Silva é uma coisa muito imponente no filme. E, dentre os cineastas de maior intimismo da década de 60, o Gerson é o menos falado. Ele é uma joia pouco conhecida”, lamenta o crítico de cinema da revista portuguesa C7 Cinema e do jornal O Estado de S. Paulo, Rodrigo Fonseca.
“Comparado por muitos ao [cineasta sueco, Ingmar] Bergman, ele era lembrado pela verve existencial, pela contemplação da exasperação dos sentimentos oprimidos, desejos incontidos, ou até por certa sensação de culpa burguesa”, aprofunda o jornalista, que também é roteirista e pesquisador da TV Globo.
Símbolos da cidade
Ambientado em 1965, o enredo é pontuado por um casal desajustado que se perde em um encontro furtivo, de um dia e uma noite, no isolamento de uma mansão do Lago Sul (bairro valorizado de Brasília), no número “9, lote 14”, como diz o personagem protagonizado pelo ator, Leonardo Vilar, no auge da carreira.
Na fita, ele é Alberto, um arquiteto e professor universitário há dois anos vivendo em Brasília. Ele marca um encontro com a amiga Norma (Leina Krespi), mulher casada com rico empresário em busca de uma aventura extraconjugal. Entre ambos paira a figura espectral de Selma, antigo caso de Alberto, vivida por Betty Faria, em sua segunda atuação no cinema nacional.
“Alberto! O único habitante de Brasília que não vejo diariamente”, ironiza Norma, ao se encontrar com ele e com convidados do Festival de Brasília no Hotel Nacional, futuro quartel general da organização. “Conheço todos os bares de Brasília. Mas não gosto de nenhum. Prefiro tomar um drink em minha casa. […] É uma penitenciária-modelo, estamos todos presos a alguma coisa”, devolve ele em suas impressões sobre a cidade, entre uma dose e outra de uísque.
[Olho texto=”“É um filme que não apenas filma Brasília, mas, sobretudo, até pela formação do Gerson em Artes Plásticas, pensa a arquitetura no cinema”” assinatura=”Rafael de Luna, pesquisador da Universidade Federal Fluminense” esquerda_direita_centro=”centro”]
Símbolos e códigos da recém-criada capital estão presentes, de forma explícita e velada, o tempo todo ao longo dos quase 70 minutos de filme. Tanto por meio dos diálogos densos dos personagens, quanto pelas imagens rápidas captadas pelo olhar poético do diretor. Vão desde as citações das siglas de endereços e prédios locais – passando por closes emblemáticos dos míticos cobogós, por exemplo –, situando com charme a Concha Acústica, a Rodoviária do Plano Piloto, a Praça dos Três Poderes, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e as carcaças dos primeiros prédios do Setor Comercial Sul da cidade e da Catedral Metropolitana, que só seria inaugurada em 1970.
A situação política do país, em meio a prisões de professores da UnB, surge na tela de forma rápida e incômoda, por meio de um telefonema de um aluno de Alberto. “É um filme que não apenas filma Brasília, mas, sobretudo, até pela formação do Gerson em Artes Plásticas, pensa a arquitetura no cinema”, comenta o pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rafael de Luna. “Acho o plano final fantástico, que traz essa ideia que juntava a tendência do cinema brasileiro, pós-golpe de 64, que era a do cinema da fossa, da autoanálise, combinando certa ideia de passividade e angústia existencial”, acrescenta.
Festival de Brasília
Produzido com ajuda da antiga Fundação Cultural do DF – hoje Secretaria de Cultura e Economia Criativa –, “Amor e Desamor” foi rodado em poucas locações, com elenco reduzido e marcou a estreia de Gerson Tavares na direção de longa de ficção.
Mais do que isso, a produção pavimentou o caminho do cineasta para a realização de sua obra-prima, o elogiado “Antes, o Verão” (1968), baseado em texto de Carlos Heitor Cony. “Foi o Hugo Carvana, que era meu vizinho em Ipanema, quem me deu a ideia de filmar o livro do Cony”, revelaria Gerson. “Os filmes do Gerson eram muito bem feitos. Dos filmes da época, eram os mais elaborados e, embora conservadores, não eram reacionários”, elogiaria Cony.
Embora muitos tenham reclamado da ênfase teatral nos diálogos do filme rodado em Brasília, o trabalho seria bem recebido pela crítica. O que ajudou o projeto intimista a ser selecionado para a mostra competitiva da segunda edição do Festival de Brasília, em 1966, ainda chamado de Semana do Cinema Brasileiro. “Acho que o fato de o filme ter sido filmado em Brasília foi um motivo óbvio para ser exibido no festival”, observa Rafael de Luna.
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“Amor e Desamor” competiu com pesos pesados do Cinema Novo, como “O Padre e a Moça”, de Joaquim Pedro de Andrade; “Opinião Pública”, de Arnaldo Jabor; e “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues. Mas o grande vencedor seria a comédia “Todas As Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira – que, além de Melhor Filme, levou também os Candangos de Melhor Diretor, Argumento, Diálogos e Ator para Paulo José, indicado outras 11 vezes na mostra, tendo abocanhado três prêmios.
Um dos concorrentes de “Amor e Desamor”, naquela noite de 1966, com o drama urbano “A Grande Cidade” – também trazendo o ator Leonardo Vilar no elenco –, o cineasta Cacá Diegues, então com 20 e poucos anos, não tem muitas recordações da premiação. Suas memórias resvalam em acontecimentos bem peculiares. “O que lembro era que o festival era bem precário, simples mesmo. Não tinha muita coisa para fazer, então, nós, os participantes do evento, realizávamos rodadas de peladas para nos distrairmos”, diverte-se.
* Com informações da Secretaria de Cultura e Economia Criativa