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12/11/2019 às 09:35, atualizado em 12/12/2019 às 09:35
Referência para o início do Eixo Monumental, território da primeira missa realizada no Distrito Federal quase tomou o lugar do complexo dos Três Poderes
A Praça do Cruzeiro, um dos cartões postais da capital, é carregada de simbologia e muitas tramas. Basta dizer que sua existência se justifica por ter sido o palco da primeira missa realizada no Distrito Federal, episódio marcante dos primórdios da história local que aconteceu no dia 3 de maio de 1957.
E a data desse batismo espiritual não foi escolhida à revelia. Nesse mesmo dia, há 457 anos, seria realizada, no litoral sul baiano, o primeiro ato litúrgico no Brasil.
É lá, próximo ao Memorial JK – outro ícone turístico do DF – que se encontra a réplica da cruz de madeira fincada pelo pioneiro Bernardo Sayão, em 1955. A original está preservada na Catedral Metropolitana de Brasília. O cruzeiro inspiraria o nome da região administrativa próxima ao Plano Piloto.
“Trata-se de uma herança da colonização portuguesa, era tradição a celebração de missas num território recém-ocupado”, conta o historiador Rafael Fernandes de Souza, autor do livro, “Cruzeiro – Retratos de Sua História (1959 – 2009)”. “São histórias de Brasília, antes de Brasília. A praça ficou com essa referência da missa”, observa o pesquisador Gustavo Chauvet, ex-superintendente do Arquivo Público do Distrito Federal.
E é verdade. Vale lembrar que, antes, bem antes da celebração da missa campal, bem ali perto da praça, onde hoje fica o Parque Nacional de Brasília, acamparam Luiz Cruls e os homens da Comissão Exploradora do Planalto Central. Cientistas e engenheiros que delimitariam os 14.440 mil km² do quadrilátero do Distrito Federal, eles sabiam que o lugar era estratégico e referencial para a construção da nova capital do país, por se tratar do ponto mais alto da área urbana de Brasília. São 1.172 metros acima do nível do mar.
[Numeralha titulo_grande=”1.172 m” texto=”é o que separa a Praça do Cruzeiro do nível do mar” esquerda_direita_centro=”esquerda”]
Assim, a história da Praça do Cruzeiro começa bem antes mesmo de JK sonhar em erguer uma cidade no Planalto Central ou Lucio Costa rabiscar seus traços urbanísticos por aqui. É o que destaca Gustavo Chauvet, apontando um dos grandes injustiçados da epopeia que foi a construção de Brasília, o Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.
Então incumbido pelo presidente Café Filho para chefiar a comissão de localização da nova capital, em maio de 1955, sua equipe – com base nos estudos feitos pela “Missão Cruls” – aprovaria a escolha do local perfeito para construir a nova capital. A instalação da cruz foi importante referência geográfica para delimitar a cidade.
“O ‘Primeiro Plano Piloto da Cidade Capital’ foi elaborado ainda em 1955, pela comissão presidida pelo Marechal José Pessoa. Neste plano preliminar, a Praça do Cruzeiro seria o ponto central da nova capital, e não, onde está localizada a atual Praça dos Três Poderes”, revela o pesquisador.
“Portanto, a escolha do local definitivo para a construção da nova capital, a fixação da cruz em seu ponto mais alto, o primeiro ‘aeroporto’, e o primeiro Plano Piloto, com a Praça do Cruzeiro, são obras coordenadas pelo Marechal José Pessoa, um dos ‘esquecidos’ na memória da construção de Brasília”, defende.
Definidos os locais da construção da capital e da primeira missa do DF, o Marechal José Pessoa solicitaria a Bernardo Sayão – então vice-governador de Goiás e já conhecido por suas habilidades como desbravador e aventureiro das matas -, para construir uma pista de pouso e uma cruz no ponto mais alto da cidade, além de estrada de acesso à cachoeira do Paranoá. Esse local é exatamente onde está a Praça do Cruzeiro. A ideia do presidente Café Filho era realizar, meses depois, uma missa no local.
Por questão de agenda adiou o evento e perdeu a oportunidade. Eleito presidente em 1955, JK não perdeu tempo, chegando pela primeira vez ao Planalto Central em outubro de 1956.
“O primeiro ponto de concentração pensando em construir Brasília dentro do Plano Piloto foi aqui, na Praça do Cruzeiro, a missa foi uma das primeiras atividades evocando esse espírito”, salienta o historiador Rafael Fernandes.
Ali, no pé da cruz, debruçados sobre mapas e tomos cheios de coordenadas e cálculos, dezenas de traçados, riscos e anotações, e brindados por vista privilegiada, JK, Oscar Niemeyer e um pequeno grupo de pioneiros tomariam uma série de decisões importantes para o início das obras em Brasília.
Entre elas, aonde seria a residência presidencial provisória, hoje o Catetinho, e o lugar da residência presidencial definitiva, o Palácio da Alvorada. E mais do que depressa, a construção de um hotel de turismo à beira do Lago, para receber engenheiros e arquitetos que fariam parte da equipe de Niemeyer, assim como curiosos do Brasil e do mundo, que queriam conhecer de perto as novas maravilhas da arquitetura moderna do século 20.
A turma estava embalada. Ainda no cume mais alto do DF, também se decidiu a mudança imediata do aeroporto para as imediações do Lago Sul, com uma pista concretada de 3 mil metros, além da demarcação das primeiras estradas vicinais para permitir o tráfego aos diversos setores das obras de construções que seriam empreendidos e as que ia dar acesso à nova capital.
Melhoria da estrada Goiânia-Anápolis-Corumbá-Luziânia-Planaltina e a instalação de olarias e serrarias no entorno foram pensadas nessa primeira viagem do presidente Juscelino ao Planalto Central.
“Nessa primeira viagem à região, JK anunciou à imprensa o prazo de 3 anos e 10 meses para entrega das primeiras obras e serviços indispensáveis para a mudança da capital,”, Chauvet. “Esse planejamento permitiu que várias obras ficassem prontas e inauguradas ainda em 1958 e 1959”, endossa.
E a importância da Praça do Cruzeiro no destino de Brasília e seus moradores não param por aí. Quase ninguém sabe, e o detalhe muitas vezes passa despercebido, mas uma marcação em forma piramidal pintada de laranja, a 38 metros da cruz fincada no local, sinaliza outro marco importante da cidade. Trata-se do Vértice nº 8, ponto usado como referência para colocar em prática as ideias de Lucio Costa para a nova capital do Brasil.
A partir dele, foram definidas, por exemplo, as linhas de latitude e longitude do Distrito Federal e possível dizer, na época, onde estava Brasília no território nacional. Ou seja, tirar Brasília, literalmente do papel, e coloca-la, no chão, dando início ao Eixo Monumental ali. Um dos agrimensores da Novacap que participaram desse projeto, o mineiro Jethro Bello, doou em 2009, para o Arquivo Público do DF, esse material precioso.
[Olho texto=”Daqui a 100, 200 anos, quando as pessoas quiserem saber como foi colocado o Eixo Monumental, o Eixo Rodoviário, o aeroporto, como foram alocadas as superquadras dentro de Brasília, os cálculos estão nesses documentos” assinatura=”Elias Manoel, diretor de pesquisa do ArPDF” esquerda_direita_centro=”esquerda”]
“Daqui a 100, 200 anos, quando as pessoas quiserem saber como foi colocado o Eixo Monumental, o Eixo Rodoviário, o aeroporto, como foram alocadas as superquadras dentro de Brasília, os cálculos estão nesses documentos”, disse na época o diretor de Pesquisa, Difusão e Acesso do ArPDF, Elias Manoel.
Réplica e ocupação
Por mais que a distância separe, a conexão entre a primeira missa realizada em Brasília, em maio de 1957, e o Taguaparque, é inevitável.
E por uma razão muito simples. A réplica da estrutura de madeira e lona construída para abrigar os mais de 10 mil convidados na festa religiosa, projetada por Oscar Niemeyer, desde 2008 está na abertura do visitado espaço de lazer.
Muita gente que corre e faz exercício ali, nem se dá conta dessa referência história. A ideia era que a homenagem, reconstruída pela Novacap, ficasse na própria Praça do Cruzeiro, o que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não permitiu.
“Era uma réplica de metal, não tinha muito a ver com a original, não cabia na proposta urbanística do local”, avalia sobre o episódio, o historiador Rafael Fernandes. “Até porque atrapalhava a vista do Memorial JK”, continua.
Outrora campo santo, passados mais de 60 anos da realização da emblemática missa seminal, a Praça do Cruzeiro, espaço democrático por natureza, se transformou hoje em agitado ponto de encontro, local de ocupação para diversas atividades.
De atrações artísticas, homenagens aos mortos à eventos gastronômicos. As marcas de velas no chão, ao pé da cruz, denunciam a visita de religiosos em dias santos, assim como os passos dos foliões na festa do carnaval, às confraternizações ao redor dos Food Trucks.
Todos, na saudade ou dor, alegria ou êxtase, convidados e espectadores daquele que é um dos melhores mirantes para o espetáculo do pôr-do-sol. “São eventos interessantes porque é uma maneira da população ocupar o espaço”, avalia Rafael.